A CASA DE TAIPA
Obra da noite para o dia. Porta de frente e fundo, janela na sala, tudo fechado.
Ninguém.
Baseando cinco dias, a chaminé fumaçando ralo e só. E os bóias-frias, indo aos canaviais pelas bandas da Venda da Forquilha, passavam mirando indignados para a coisa esconsa.
Era a Casa de Taipa, ali na curva do caminho.
O zunzunzum trazido de carroceria espraiou-se pelo Lugarejo. No Lugarejo, uma coisinha assim vira tendepá. E o bando de alcoviteiras licenciadas tomou a dianteira de sondar na curva - por esse tempo, “a Curva da Casa de Taipa”.
Escala de plantel composta entre elas, aos pares alternados, manhã e tarde, fundamentaram a suposição onde os bichos saem da toca no clarear do dia e só voltam quando escurecendo. Quebraram a cara. A casa, perenemente acintosa, com portas e janela fechadas, fumegava ralo na curva. Nada mais.
O fiasco também da ronda noturna alarmou um tal reboliço para a zona central, com passeatas, latas e latidos. Na ponteira, as licenciadas bradavam chavões clamorosos, no sentido de sensibilizar as autoridades, e, lá na Casa de Taipa, conduzir a efeito uma investigação precisa sobre o misterioso morador.
Esse vai-não-vê ia deixando em branco outros dois fatos no Lugarejo: primeiro, o sumiço de criações na redondeza, com porcos, cabritos, bezerros e mesmo cavalos, um a um, despencando-se das contas dos proprietários, sem paradeiro.
Segundo, na casa do Aguiar, com a doença do filho-homem.
Aguiar vinha no espeto dias e noites enfileirados, com o moleque rolando de dor, sem ao menos comparecer ao açougue do pai. Curandeiros e benzedeiras vieram sussurrar com raminhos e santinhos, depois desenganaram. O caso seguiu ao balconista de farmácia. Neto Penicilina deu um diagnóstico científico. Aventou a necessidade de um ir à Comarca trazer morfina.
Nos arredores do Aguiar espraiavam as pessoas velando o enfermo. A noite, sem lua, era um mormaço, e o doente berrava molhado de suor. Chega ali um estranho. Senta-se à cabeceira do leito. Contempla com preces estrambóticas, faz palpadelas de dorso de mão, vendo a febre. Sai ao terreiro reclamar pelo pai. Manda atrás de vara de marmelo, surra calculada. Ali, doença não era. Malandragem do garoto.
Aguiar estarreceu sem saber onde tinha ficado a cor, cuspindo alto para saber de quem se tratava o sujeito desaforado.
Era o Pai-de-Rezas, morador da Casa de Taipa.
Tomado de ética, Neto Penicilina não aplicou o corretivo conforme o indicado. Ele, balconista de farmácia, entretanto admitiu as desconfianças de haver vadiagem naquela alcova de doente. Teve com o dito cujo uma conversa de vigário, de modo a reconduzi-lo ao açougue do pai no primeiro dia.
Desse modo, tendo o moleque se restabelecido, Pai-de-Rezas virou comentário de sala e cozinha. As alcoviteiras, entrementes, resignavam-se. Porque, antes de ser isso o fim do encanto, doravante o mistério encalacrava-se na curva. Não dava mais para tolerar parentes espevitados de moribundos socorrendo-se à Casa de Taipa.
- É o sogro perrengue, com crises uma perto da outra.
Por uma janela entreaberta, a voz do de-Rezas:
“- Três luas para frente, o sogro dará sintomas de melhora, até sete primaveras”.
- É a mãe, pobrezinha, oitenta e três anos e agora desandada com cãibra de sangue.
Fresta da janela, o de-Rezas:
“- Perto do dia de São Lázaro, um aviso aos povos dela, a mãe descansa“.
Assim por diante, com os exemplos bisonhos de se relembrar.
Pai-de-Rezas anunciava e batata!
O lugarejano voltou relancear ressabiado para a Casa de Taipa. Até quando as alcoviteiras entraram tirando a Cadeia do estado cochilento. Elas mesmas haviam investigado, dispunham de pormenores sobre o sumiço de criações.
O senhor Cabo achou graça, enquanto dona Robusta matou a cobra e mostrou o pau: o Pai-de-Rezas.
Explicou melhor. O de-Rezas larga a toca na madrugada de lua quarto-mingüante, vem carregado e despeja sabão na varanda. Fornece ao Mercado, a preço bagatela e sem concorrência. Dono do Mercado, pelo visto, é conivente.
O plantonista da Cadeia continuou achando graça, com dona Robusta antevendo, esse Cabo sambanga não pegava o fio da meada. Ela detalhou: sabão, o treco feito com porcos, cavalos, novilhas... As criações sumindo nas redondezas.
A Cadeia ainda considerou pouco convincente. Provas faltantes, dispositivos elementares, a coisa decisiva. E as alcoviteiras perderam a cabeça: amotinadas de lá para aqui no centro, arrumaram um sururú de paus e poeira. Daqui, a passeata engrossou comprido até na Casa de Taipa. Houve invasão, quebra-quebra, fogaréu e banimento dos desaforos e ladruagens do lugar.
O de-rezas, já se esperneando na arapuca, fugiu dali, anoiteceu mas não amanheceu.
O senhor Cabo, entretanto, determinou investigações para além da curva, valendo-se da calmaria agora reinante sobre os céus do Lugarejo.
Transcorridos os tempos, hoje em dia há um projeto da vereança para restaurar a Casa de Taipa, tirá-la dos pandarecos e abrir as portas à visitação. Vivem caçando o de-Rezas, com o intuito de resgatar ao lugarejano os benefícios dos benzimentos.
Devido aos fatos agora esclarecidos.
A lua não era quarto-mingüante nem quarto-crescente, quando verdadeiramente ninguém nem se dava para as fases da lua, a Cadeia encerrava o caso dos sumiços dos animais.
Flagrante efetuado longe da curva, com o senhor Cabo surpreendendo o Aguiar, o açougueiro. Tinha as mãos na cumbuca, suprimindo as criações ali na fuça dos proprietários e das alcoviteiras. De lá para cá, largou a freguesia e veio morar no xilindró. A cela é a de número dois.
Milton Luiz Moreira - Catanduva - SP, 30/03/83.
* Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2.a Ed.