Meninos de rua: o trabalho
Caminhava pelas ruas da cidade após alguns dias afastados do centro. Havia olhado livros, comprados livros e agora já de retorno a minha casa, esticava as pernas pelas avenidas da minha capital. Ainda era constante a satisfação de ter comprado o Nietzsche. De repente me veio à vontade de sabê-lo, de aprendê-lo. Confesso que algo de diferente aconteceu comigo após a Genealogia da Moral.
Andar do antigo Recife ao novo faz sorrir uma alma, milhões de almas. E outras fazem chorar. Assim que saí da livraria comecei a olhar a minha paisagem ensolarada dos finais de janeiro. Os raios do sol da tarde ainda raspam a superfície morna da água esverdeada do Capibaribe em minha memória. Ele, o Capibaribe, ali começa a entrar no mar e o mar nele, como se copulassem na eternidade.
Atravessei a ponte sem pressa. Ainda olhava os movimentos de um rio calmo e morno. Do outro lado começo a sair do imaginário ou do quase real para a realidade vivida no centro da cidade, nos becos da cidade, em cada sinal, em cada esquina do Recife. Fazia dias não os via, agora mais perto do que nunca, caminhava lado a lado com eles, os nossos moleques. Estavam sentados na lateral da Rua do Imperador, confabulavam, pareciam conspirar algo indecifrável naquele momento. Descobriria logo depois, naquela mesma tarde de sol.
Dei mais alguns passos e me vi no centro do Recife. Ruas agitadas, muitas filas e gente de todas as idades distribuídas nas filas dos pontos de ônibus, nos estabelecimentos comerciais, nos órgãos públicos. As pessoas conversavam na tranqüilidade de um janeiro. Nossas crianças, após a reunião começavam a mostrar movimentos mais fortes e rápidos pela grande avenida. Aumentavam suas passadas, o matraquear, como bandos soltos que eram. Solitários em seu próprio grupo. A individualidade se expressava em cada gesto, em cada sopapo que davam ao passar pelas ruas. Caminhei logo atrás, satisfeito por estar ali com eles, mas não eles comigo. Quis até falar, tocá-los, dizer olá. Não se importavam comigo, mas também, por que haveriam de se importar com mais um passageiro do bonde de sua agonia? Eles na frente e eu atrás. Os perseguia. Não dei trégua até ver o fim de seus objetivos.
Reparei num pretinho que estava sendo engolido por uma camisa, sei lá, maior do que seu corpo. Ele se aproximou de uma jovem que esperava seu ônibus. A fisgada foi certeira, mas não eficaz. O menino segurou firmemente a mão da jovem tentando arrancar algo de suas mãos, talvez o dinheiro da passagem do coletivo. Não teve condições de conseguir a sua prenda, suas mãos criança, eram muito fracas e debilitadas para conseguir algo daquela mocidade. Mais ao lado e ainda na minha frente, outros se agitavam e olhavam descaradamente para dentro das sacolas dos pedestres buscando algo que os interessasse, trabalhavam incessantemente na sua meninice diurna para obter recursos para seus vícios e para sua fome.
Minha bolsa estava ali a sua disposição. Claro que não encontrariam algo de valor para os restos de suas vidas. Só haviam livros, como tantos outros que já tenho com o objetivo de entender esta sociedade que os liberta da felicidade e os empurra para o emaranhado conflituoso da vida de rua.