_Aparição

.:.

Quase nada se conhecia daquele homem. Sabia-se que ostentava nariz adunco[1], aquilino... E vivia silenciosamente entre os vizinhos; as pisadas, sinais grafados ao longo do carroçal[2], eram as únicas a denunciarem a entrada dele no vilarejo. Como chegou, entretanto, desconhecia-se.

Nas últimas sete semanas formou-se verdadeiro ritual ao longo das ruelas[3]. Os moradores, curiosos, o espreitavam[4] passar, não se sabia para onde, pontualmente, às sete horas da manhã. O retorno, sem atrasar um segundo sequer, era às dezessete horas, quando o sol já se mostrava cansado e ansioso por deitar-se.

Quando a imagem dele surgia translúcida, mas tremida, diante de nós, o sino da única igreja da cidade soava em estridulosas[5] badaladas. Eram exatamente 14 toques, nem a mais nem a menos! Quem anunciava quem? Estaria o homem a atrair os repiques? Ou ressurgia, metafisicamente[6], ao estrondoso rebate dos sinos provocados pelo serventuário da capela? O homem parecia materializar-se com os arrufos do gongo... O povo delirava; o tempo parecia sincopar[7]; nossas mentes estavam atordoadas e as tradições, quebradas pela aparição daquele homem. Ora, os sinos sempre dobraram exatamente sessenta minutos antes da Ave Maria!

Aquele homem pesado, gordo e de cheiro forte percorria as veredas do vilarejo, até onde nossa visão podia buscar, e depois sumia... Minha acuidade visual não era das melhores, nunca foi, mas eu o sentia, mesmo assim, sumindo como aroma de perfume francês, deixando saudade.

Estávamos presos àquele homem. Vivíamos em função da rotina que ele, inconscientemente, criara em todos nós. A cidade girava em torno dos hábitos dele.

Se aquele homem tinha algum passado, deixara-o perdido no tempo. E se estivesse acorrentado às recordações que o perseguiam durante as caminhadas pendulares dos dias, firmes e pontuais como o respirar humano, carregava um fardo pesado demais.

Impossível caminhar sem refletir. Assim pregou o maior dos profetas, caminhando... Estaria preso a recordações? Não nos olhara diretamente nos olhos. Não admirava a beleza do horizonte. Caminhava cabisbaixo como a sofrer o peso d’alguma carga que o consumia a si mesmo.

Meu poder estava na insistência. Minha fraqueza, na falta de coragem. Eu, e todos os outros, olhávamos, observávamos... Mas não o seguíamos. Afinal, pra onde iria todas as manhãs? O que fazia?

Quis investigá-lo. Nenhum cheiro de comida. Não havia sinal de móveis – se existissem, não eram carregados pela casa. Do banheiro da acanhada residência de três cômodos, nenhum sinal de descarga!

Ninguém sabia como se instalara: se chegou de madrugada, não pediu ajuda; se durante o dia, não percebemos. Deveria ter vindo dos céus: pegadas o denunciavam – quem não o assistia aproximar-se, percebia, nos sulcos dos vestígios encontrados, o sinal da aparição. Os rastos, deixados ao longo do único caminho que nos ligava ao que achávamos tratar-se de civilização, eram a senha. Éramos vizinhos e íntimos. Éramos irmãos e confidentes – o silêncio nos comunicava; o desconhecido nos incomodava.

Ele caminhava. Nenhuma saudação – nem de lá nem de cá. Temíamos dar um “Bom dia!” – e se não obtivéssemos nenhuma resposta?

Ele retornava, suado. A cada dia se mostrava mais carcomido pelo sol. Eram dezessete horas!

Eu desejava ouvir um “Boa tarde!” daquele homem; queria pelo menos isso, poder cumprimentá-lo, mas como o chamaria: de ‘Seu Zé’? Ele parecia instruído, apesar das pegadas de elefante que tremiam os torrões do nosso árido chão, levantando poeira. Usava roupas brancas, parecidas ou desiguais, umas destoando das outras. Não conseguia identificar o que nele me atraía. Além do nariz de águia, o estrondo das pisadas daquele homem, ao deambular[8], movimentava-me a alma!

Ele passa por mim. Mais uma vez, nenhuma saudação...

Cinco. Seis. Sete passos. Ele está em casa. Entra. Fecha a porta e nada de movimentação. Nem tevê, nem fogão ligado. Nem descarga! Mas respira! Com o ouvido grudado à porta, não percebo nenhum sinal de vida – o estático parece ser a única dinâmica permitida. Silencio. Aquele lar me fez ouvir minha própria respiração. O cantar de um grilo me atormenta. Pronto, pisei no desgraçado e agora posso auscultar a pulsação daquele homem. Outro grilo começa a cantar...

O dia ensaia amanhecer. O sol parece cansado como se a noite tivesse sido deliciosa pândega.

Exatamente às seis horas, canta o galo da Dona Quequé, o meu galo preferido. Sinto-me sôfrego[9], demasiadamente malsofrido. Naquele dia eu romperia a barreira do silêncio, já estava decidido. Dirigiria àquele homem de nariz aquilino, distante sete passos da minha casa, um “Bom dia, Seu Zé!”.

Sete passos... Sete horas... As janelas das casas do vilarejo se entreabrem – todas – ao mesmo tempo. Era o balé da bisbilhotice. Percebem-se carinhas curiosas e fofoqueiras se escondendo atrás das frestas.

O galo de Dona Quequé canta. Eita galo pontual!

Sete minutos depois, algumas cabeças, insatisfeitas, ultrapassam a fronteira das janelas. Parecendo galos e galinhas presos em celas, ficam todas assustadas, olhando para os lados, na esperança do aparecimento do homem diante de nós. Nada, nenhum sinal.

Olhávamos todos. Observávamos também, mas nada de agirmos. Estávamos presos aos nossos próprios medos e divagações.

Passaram-se sete dias...

Mudei de cidade, sentindo-me aliviado – talvez minha desejada ataraxia[10] não estivesse ali, num lugar enxertado de homens e mulheres que temiam a vida com a mesma intensidade com que tememos a morte. Minha alma estava distante dos prazeres sensíveis e espirituais. Precisei partir sem deixar nenhuma saudade, além da que carregaria comigo como impingem: que coça em demasia, dói de forma extremada, mas causa prazer quando nos sangra a pele.

Aos poucos, o vilarejo se esvaziou como se uma faca o tivesse atingido, dilacerando-lhe as vísceras e provocando no corpo social hipovolemia letal. Onde havia moradias dispersas tornou-se o habitat de pássaros silvestres e de répteis asquerosos e indesejáveis como todos os que ali habitaram.

Hoje, velho e bem perto do recomeço, ainda sinto a frustração de, por puro medo, não ter dito um “Bom dia!” àquele desconhecido, enquanto a vida nos permitiu conviver. Nos meus sonhos, ouço pegadas; o cheiro insuportável que deixei para trás no dia em que parti, sem deixar saudade, mas sentindo que parte de mim ficara para trás, também me incomoda.

Todos partiram sem desvendar o ocorrido na casa que ficava a sete passos da minha. Casa que, ainda hoje, permanece fechada e silente como o fez seu mais ilustre morador.

Quase nada sabíamos sobre ele...

Imaginação de homens e mulheres carecendo de superstições para sobreviver?

A morte do mito culminou com o aniquilamento do povoado. Houve um antes, um presente e a incerteza do futuro: precisamos dos nossos monstros para sobreviver.

Crato-CE, 16 de agosto de 2009.

03h44min

[1] Em forma de garra, recurvado.

[2] Estrada de terra; estrada de barro.

[3] Pequenas ruas, vielas, quelhas, travessas.

[4] Espreitar: observar sem querer ser visto; perscrutar, espiar, vigiar.

[5] Estridentes, agudas, sibilantes (como o sopro do vento).

[6] Abstratamente. Obscuramente.

[7] Parar subitamente.

[8] Passear, vaguear.

[9] Ansioso, impaciente.

[10] s. f. Serenidade de ânimo.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 29/02/2012
Reeditado em 01/03/2012
Código do texto: T3528184
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.