Sciuscià
O guri encarava um batente que não era pra qualquer um. Como bom brasileiro, logo cedo saía com uma pequena caixa de madeira e suas latas, escovas e outros badulaques. Mas não reclamava, apesar da grana mixuruca que recebia após cada série de escovadas nos sapatos sujos dos pintas, ele sabia que de alguma forma estava contribuindo com o pai, que além dele, tinha uma penca de moleques pra sustentar. Com a vida custeando os olhos da cara, cada um ajudava da maneira que podia.
Depois de alguns meses circulando pelo fórum, a clientela do guri já era fixa. Cartorários, advogados, escrivães e juízes, todos por ele chamados de dotôr, sempre davam uma paradinha pra dar um trato no visú quando sentiam necessidade.
O guri não se afobava e nem reclamava, cobrava R$ 3,00 pelo trato rapidão, praqueles que estavam mais fáceis de limpar, e R$ 5,00 pros sapatos machucados ou sujos demais. Seu trabalho às vezes era elogiado, e em outras levava uma patada. Mas o guri não ligava, sabia onde estava se metendo e que nem todos ali tinham tido um bom dia. No máximo ficava na bronca e emburrado aprunhava seu equipamento e ia embora com a grana mixuruca no bolso.
O tempo ia passando e o guri já tinha ouvido muitas histórias. Conhecia desde as quebradas da biqueira até o alto escalão da cidade. Via aquele movimento de ida e vinda pelo fórum todo o dia e se encantava. Alguns saíam tristes, alguns felizes, alguns emputecidos. Ele sacou. Queria ser juiz, mesmo sem saber direito o que aquele cara fazia, ele sabia que fazia algo bom.
E como todo dia é dia, lá estava o guri em frente ao fórum novamente, logo de cara atendeu dois advogados e de gorja ainda ganhou R$ 2,00 de cada um. Seu próximo cliente em potencial já vinha se achegando e o guri ofereceu o serviço.
- Seja rápido, respondeu o Dr. Eugênio, juiz sexagenário do juizado especial.
O guri começou e logo percebeu que o sapato do juiz merecia atenção especial, tinha sido ralado e estava mesmo precisando de um trato. Caprichoso como sempre, ainda passou uma última mão de gororoba pra deixar o caminhar do Meretíssimo ainda mais elegante.
Com um sorriso satisfeito o guri anunciou:
- Pronto dotôr, são R$ 5,00!
Não prestou, o dotôr olhou emputecido pro guri e apontou o dedão!
- Como R$ 5,00, ta querendo me fazer de palhaço? Só porque tenho dinheiro acha que vou ajudar vagabundo?
O guri se assustou mas tentou argumentar.
- Dotôr, eu tive que passar outro produto, o sapato do dotôr tava tudo ralado...
Aí o juiz deu a prensa:
- E não me avisa? Eu dei a ordem pra passar o produto? Toma aqui os seus R$ 3,00 que já está muito bem pago, moleque!
O guri manjou a do juju. Nem esperou ele tirar a merréca do bolso e avisou:
- Não precisa não, esse fica por conta da casa. Parece que o dotôr ta precisando mais do que eu.
A currióla atenta que presenciou o espetáculo nem se mexia.
O guri sim se mexeu, pegou seus pertences com calma e saiu com um sonho a menos pra se incomodar.