O rio - Cem dias sem laços Cap. IX
Quando o sol se levantou vermelho rasgando as brumas da manhã, o graneleiro já rodava pela BR 262. Seriam poucos minutos até o Rio Pará. Isac que certamente conhecia cada palmo da interestadual sabia disso e não perdia tempo. Era palrador e tinha necessidade de ouvinte, Alberto era bom nisso...
_ É minha última viagem. Boto este caminhão à venda e fico quieto. Na verdade compro um pedaço de terra, realizo um sonho de criança. Vou criar galinhas, cultivar uma horta, um jardim. Reunir os amigos aos domingos para tocar uma viola. Uma loja na cidade, de produtos agropecuários só para ocupar o tempo. No mais: criar pássaros, cultivar orquídeas. Ler bons livros, assistir bons filmes.
O braço direito, magro e peludo de Isac traçava no ar círculos largos. A largueza do seu mundo imaginário. Interrompia automaticamente o gesticular frenético, mudava de marcha, voltava a reger sua orquestra invisível.
_ Faz trinta anos que estou na estrada. Poderia escrever alguns livros interessantes sem ter que inventar coisa alguma. Tenho histórias muito doidas para contar.
_ Por que quer deixar uma profissão de que gosta tanto?
_ Arrebentei com a minha saúde tomando estimulantes e cachaça. A gente envelhece e a coragem vai embora. Não sou mais o mesmo e não sinto mais aquele velho prazer em correr mundo. Não foram poucas as vezes que passei três dias e três noites ao volante. Um litro de cachaça aqui atrás do banco, ao alcance da mão. O sono apertava, eu tomava um remédio, mais um trago. Não tinha embaraços, rodava centenas de quilômetros sem ver, como um autômato. Chegava sempre, nunca tive um acidente sério. Tinha um lugar pras bandas do Mato Grosso onde eu ia com certa freqüência puxar carvão. As estradas eram muito precárias, muita lama ou poeira, ladeiras, pontes condenadas. Às vezes eu me aproximava de uma ponte e haviam caminhões parados, caminhoneiros sensatos, conhecedores dos riscos, esperando por soluções. Eu tomava mais uma cachaça e na mesma toada que eu vinha eu passava. Logo os outros se animavam e também passavam. Hoje não bebo mais, nem tomo mais os comprimidos para não dormir. Tornei-me um água morna. Melhor mudar de ramo.
Passavam pela última curva para a esquerda antes do rio, um declive longo, outra curva para a direita e lá estava a ponte. O sol da manhã alongava as sombras das árvores sobre o espelho das águas. Isac parou o caminhão. Alberto agradeceu pela carona e saltou. Ficou olhando o veículo cruzar a ponte e partir. Uma lufada de vento fresco sacudiu-lhe os cabelos em desalinho. Um bando de pássaros pretos fazia uma tremenda algazarra numa árvore próxima. Uma trilha estreita descia a costa partindo da margem da rodovia bem do ponto onde ele estava. Seguiu-a devagar. Lá debaixo da ponte estavam as marcas deixadas pelos muitos peregrinos que por ali se abrigavam. Restos de fogueiras, pedras amontoadas à guisa de fogão, garatujas de carvão nas estruturas de concreto. Sentou-se num tronco carcomido, arrastado de outras paragens por alguma cheia, e ficou ouvindo a voz do rio cantando nas pedras.
Devia ser sete horas. Tinha muito tempo até a chegada do Sabonete.