Sinal Fechado.
Praxedes já havia tomado vários chopes e degustava a segunda porção do seu tira-gosto preferido, amendoim torrado bem salgado, quando o amigo chegou, puxou uma cadeira, chamou o garçom e pediu um gim-tônica, com pouco gelo, por favor.
-Arre égua, Zé Lelé! O que aconteceu com o bom e velho chope? Gim-tônica é? Virou bacana, foi? Assim... De uma hora pra outra?
-Não é nada disso, cara! A caminho daqui, eu parei naquele sinal de quatro tempos ali, no cruzamento da Av. Rio Madeira com Vieira Caúla...
-Sei! No bairro Nova Porto Velho, esquina com a Churrascaria Boi na Brasa... Sim... E daí?
O garçom chegou, entregou a bebida para o cliente e saiu sem nenhum comentário. Zé Lelé sofregamente deu um grande gole e agradeceu ao garçom:
-Valeu cara! Obrigado! E daí...? E daí é que aconteceu uma cena inusitada comigo.
-Cacete, Zé! Inusi... O quê? Lá vem você de novo com essas palavras estranhas... Puta merda, cara! Faz favor, quando conversar comigo, faça o favor de usar palavras do português de gente... Ok? É o que dá ter amigo metido a escritor...
-Escritor não, escrevinhador! Não tenho nada publicado, cara! Escrevinhador, simplesmente escrevinhador, beleza? Ok! Ok! Inusitada, significa algo extraordinário, fantástico... Diferente... Esquisito... Sacou? Continuando o papo... E vê se não interrompe de novo... Tá ligado? Pois é! Aconteceu um fato inusi... Quer dizer, um fato extraordinário...
-Deixa de suspense e vai direto ao ponto... Entra logo no assunto... Saco...!!!
-Então! Eu vinha pela Av. Vieira Caúla, sentido centro, e, quando eu cheguei ao cruzamento da Rio Madeira, o sinal fechou... Aquele sinal, é um sinal de quatro tempos... Demora pra cacete... Pois é, cara! Na iminência da demora me preparei para esperar, coloquei um CD e olhei em volta, distraído... Aquela olhada em que você olha sem vê... Adivinha quem é que estava ao volante do carro ao lado do meu?
-Não faço a menor ideia! Quem?
-Lembra-se do Juquinha Bico Doce?
-Juquinha... Juquinha... JUQUINHA! Claro! O Juquinha metido a galã... Na verdade o sacana com aquela conversa melosa dele ganhava as menininhas todas... Não sobrava pra ninguém... Juquinha, hem! Quem diria... Há anos que não ouço falar no cara... Espera aí, logo depois que a gente entrou na faculdade ele não migrou para a Itália? Faz bem uns vinte anos, né não? E o cara, continua boa-pinta?
-Que nada, rapaz! Careca... Cheio de pé-de-galinha... E pela cara redonda, está mais gordo que você... E bota gordo nisso... Não é mais nem sombra daquele Juquinha... Nem reconheci o cara... Ele que me reconheceu...
-Hummm!!! Quem diria, hem? O tempo é cruel... E o que ele tá fazendo aqui? Voltou a morar no Brasil?
-Não sei muita coisa... Parece que veio passar uns tempos... Visitar os parentes... Diz ele que, quem sabe, rever as meninas... Quem sabe até morar...
-Meninas? O cara pirou o cabeção... Que meninas que nada, rapaz... A maioria delas já viraram avós faz tempo... Algumas viraram cada trubufú que dá dó... Vôte! Outras, não! Viraram cada coroa ajeitada... Tu se lembra da Aninha? Aquela das perninhas finas e joelho de bolacha? Amigo do céu! Tá a fotocópia da Luiza Brunet... Meu camarada! Tá muito gostosa... ARRE ÉGUA!!!
-Pois é, estou sabendo! E não é só isso... Sabe quem também estava no sinal? Fazendo malabares? Pedindo uns trocados? Umas moedinhas? Acabado...!!!
-Tô voando! Nem sequer imagino... Quem? Quem? Mais um daquele tempo? Da faculdade?
-Não, cara! Do tempo em que a gente era menino... Moleque... Do tempo em que gente jogava bola no campinho da Baixa da União... Lembra-se do time do português? Do Corinthinha? Do goleiro, cara? Como era mesmo o nome dele...??? Lembrei! Tião...
-Isso! Tião! O neguinho Tião... Canela fina... Ágil que nem um gato... Lembro bem do moleque... Fechava o gol... Me diz uma coisa... Ele não graduou em Direito? Não era advogado? Tempos atrás ouvi dizer que ele andava pelo interior do Estado, advogando... Como é que o cara foi parar num sinal... Mendigando trocados?
-Acho que foi droga... Coca... Crack... Algumas dessas merdas... Sei lá, cara! O que sei é que o sujeito está com as veias que faz pena... Mãe do Céu!
-Espera aí, meu! Como não sabe? Você não conversou com o cara? Não procurou saber nada? Que merda é essa?
-Não deu, cara! Eu estava parado na Rio de Janeiro, o sinal estava aberto para os carros da Vieira Caúla... O Juquinha estava no carro ao lado do meu... O Tião estava no outro lado da Vieira Caúla fazendo os malabares para os motoristas do outro lado... Quando o sinal abriu para os caras de lá, o mendigo veio para o nosso lado e começou a fazer o trabalho dele... A gente, eu e o Juquinha... Nós olhamos sem ver o cara... Olhamos por olhar... Eu fazendo perguntas para o Juquinha e ele fazendo perguntas para mim... A gente de olho no sinal... Uma barulheira danada... Som de CD, rádio, os cambaus... Buzinas, carros acelerando... O mendigo com o boné esticado em direção à janela do carro... A gente querendo saber as novidades da vida um do outro... Pedindo mutuamente números de telefone, e-mail, marcando encontro para um chope, um churrasco, talvez... Um encontro com a turma... Relembrar os velhos tempos... Tudo muito rápido... As janelas dos carros abaixadas... Um calor do cacete... O cara querendo saber se eu tinha casado... Se tinha filhos... Ele estava divorciado... Tinha casado com uma italiana... Não tinha filhos... Eu falei que também não tinha filhos... Que não era casado... Mas que vivia sim, com uma mulher, claro... Ele dizia que divorciou em razão de uns chifres que levou... O mendigo quase esfregando o boné na minha cara... Aí eu olhei irritado para o cara, pensado em mandar o sujeito para a puta-que-pariu ele... E aí... E aí... Meu Deus do céu! Foi nesse momento que eu reconheci o Tião...
-Caralho...!!! E daí?
-Porra, cara! De repente eu me dei conta do inusitado da situação... Eu ali... Todo lampeiro... Marcando churrasco, chope, uma porrada de coisa... Carro do ano... O Juquinha na PAJERO zerada... Estalando de nova... Você me esperando... Gordo que nem um paxá... Bem de vida... Naturalmente comendo um puta de um tira-gosto e não essa merda que está em cima da mesa... E um cara que fez parte da nossa infância... Nosso amigo pra caramba... Pau-pra-toda-hora... Ali, no sinal, mendigando uns trocados... Advogado, mas fodido... E o Juquinha falando sem parar... Lembrando de todo mundo, querendo saber dos telefones da turma... Aí eu disse... Disse não, eu gritei o nome do Tião, pedi para entrar no carro... O sinal abriu... O coitado do Juquinha quando ouviu o nome do Tião tomou um susto tão grande que deixou o carro “morrer”...
-E aí, cara! E aí...???
-E aí? E aí, cara! É que os motoristas atrás de nós começaram a buzinar e a xingar... Virou uma doideira... Eu querendo abrir a porta do carona, o Juquinha tentando fazer o carro dele “pegar”... Os caras buzinando, chamando as nossas mães de “santa”... Eu insistindo com o Tião para entrar no carro...
-E daí?
-E daí, meu! É que quando o Tião nos reconheceu... Quer dizer... Quando ele me reconheceu, o cara largou tudo e saiu correndo...
-Como assim, correndo? Se mandô, escafedeu?
-Sim, cara! Se mandou... Sumiu na poeira das ruas... Nas esquinas da vida... Igualzinho à música do Paulinho da Viola, lembra? “Sinal Fechado”
-Sinal Fechado?
Sim, meu amigo... Sinal Fechado!
E depois de tomar de uma vez o resto do gim-tônica, com lágrimas nos olhos Zé Lelé cantarolou baixinho com a voz embargada pela emoção.
“...Quanto tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...)
Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer...”
-Garçom! Outro gim, sem tônica... DUPLO, faz favor!