AVES DO PARAÍSO


As árvores do pátio da igreja estavam encolhidas sob a neblina, uma neblina gelada grudando nos ramos pendendo para o solo com o peso das gotas da recente chuva. A neblina entrava nas crostas das árvores seculares, assentava pegajosa nas pedras da escadaria, subia aos céus, tapava todas as estrelas. Padre Chiquinho foi acendendo as velas dos castiçais de sua velha e inútil igreja, amaldiçoando baixinho todas as corujas que faziam aquele rebuliço todo na hora da Sagrada Missa das noites de domingo. E o pior: elas nidificavam no campanário. Devia exterminar de uma vez por todas aqueles bichos pavorosos. Era sempre durante as missas que achavam de piar com mais intensidade. Há quanto tempo suportava aqueles pios malditos? Tentou lembrar-se enquanto carinhosamente continuava a acender as velas. Desde que chegara naquela capela, afirmou convictamente. Ou melhor, dois dias depois de assumir a pequena igreja naquela cidadezinha onde Judas perdeu as botas. No começo, quando viu os ninhos sendo construídos, sentiu uma espécie de ternura – apesar de corujas não deixavam de ser pássaros, dissera a si mesmo. Então passou a subir todo dia até o campanário e ficar admirando por alguns minutos aquele milagre da natureza. Apareceram os ovos. Padre Chiquinho parou de tocar o sino. Por amor às corujas foi a todas as residências da paróquia avisando de suas providências. Mas tudo tem um limite. Suportara muito a interferência daqueles monstrengos, disse a si mesmo acendendo a primeira vela do último castiçal. Estava velho e muito cansado de tudo. Na verdade, não devia ficar morando sozinho naquela capela perdida no oco do mundo – a tão sonhada vida de ermitão em pouco tempo mostrou-se um desastre… lembrou-se, ao acender a segunda vela do último castiçal, de como lutara para conseguir aquele templo, como fora de bispado em bispado, falando com paredes, alegando que tinha mais de oitenta anos e era muito senhor do próprio nariz para saber o que queria e o que não queria. E de tanto perturbar, de mostrar suas rugas, varizes e bengala aos seus superiores, conseguiu a capela. E ali morreria, tinha certeza. Talvez os graduados das dioceses até tivessem esquecido de sua existência. Acendeu a última vela do último castiçal e saiu com aquele passinho miúdo, apoiado na bengala, até a porta. A neblina grudou-se em seus paramentos desbotados pela antiguidade. Enrolou o cachecol no pescoço branco e enrugado e ficou olhando lá fora. Logo começaria a chegar as suas ovelhas (e perguntou-se por que continuava a chamar de ovelhas àqueles homens barbudos e com botas cheias de estrume de gado). Não distinguiu ninguém pelo caminho. E os pios das corujas estavam a enlouquecê-lo de irritação. Parecia-lhe que estavam a lhe romper os tímpanos. Resolveu ir ao campanário. Pegou uma vela no castiçal e subiu a escada querendo cair. O bando medonho o recebeu sem demonstrar vestígios de medo. Um filhote com seu olho redondo soltou um grito rouco e bateu as asinhas sem penas para o Padre Chiquinho. As aves adultas continuaram a piar. O padre coçou a cabeça. Não tinha jeito não. As safadas já haviam acostumado com sua presença e talvez o considerassem como da família. Ante esse pensamento perturbador, padre Chiquinho retornou à nave, colocou a vela no castiçal e foi para o altar. Suas ovelhas já haviam chegado. Sentiu-se melhor e começou a missa – em latim. Aqueles dois velhos nem o olhavam. Discutiam política. Padre Chiquinho lembrou-se que um dia haviam levantado a voz, exaltados, ele mansamente dissera que aquilo não se fazia, estavam na casa de Deus, não se esquecessem. As velhas beatas, encolhidas no banco como galinhas friorentas, tinham-no como maluco e riam piedosamente, com medo de Deus. O casal no fundo da igreja se beijava. Uma vergonha – murmurou o padre baixinho. As corujas continuavam a piar, infernizando-o. No fim da missa, chamou um dos políticos e pediu que as aves malditas fossem exterminadas. O sujeito assentiu. Logo de manhã viria com sua espingarda. Na manhã seguinte padre Chiquinho acordou com o som de tiros e pancadas no campanário. Logo, o homem adentrou seu quartinho com grande sorriso anunciando que o serviço fora feito com presteza e apuro. Mostrou-lhe um saco de estopa, estufado e ensanguentado, despediu-se tocando na aba do chapéu de palha e se foi. Padre Chiquinho respirou fundo, contente. Sorriu. Tentou reconciliar o sono, que ainda era cedo. Porém, nada. Levantou-se, vestiu-se. Caminhou pela igreja silenciosa com a luminosidade do dia enchendo os espaços. Foi para a cozinha, preparou um chá de funcho, pegou no guarda-comida um pedaço do pão feito por uma das beatas, deu uma mordida e sentiu remorso – lembrava-se que ordenara o assassinato das criaturinhas que eram, também, filhas de Deus. E os filhotes com seus olhos redondos piando loucamente? Jogou o pedaço de pão sobre a mesa. Se fosse um outro dia, antes do desjejum iria ao campanário fazer uma visita aos filhotinhos. Agora não havia mais filhotes, portanto não soube como eliminar aquele hábito. Saiu da igreja, passeou pelo adro – estava desnorteado. Às nove horas fez um mingau de aveia. E as corujas? Costumava tomar o mingau ouvindo o chiado de algum filhote. O mingau não lhe descia pela garganta. Deixou-o pela metade. O período da tarde foi o mais secular de sua vida. Costumava ficar olhando os ninhos a cada meia hora. Agora não tinha o que fazer. O dia inteiro sem nada para fazer. Resolveu escrever um discurso. Badalaria o sino, os fiéis saberiam que haveria uma missa naquela segunda-feira. Diabo, tinha que ocupar o tempo imensuravelmente disponível! À noite tocou o sino e foi acender as velas. Acendendo as velas, viu que não tinha em que pensar – e não ter no que pensar é a pior coisa do mundo, garantiu a si mesmo. Pensar no discurso poderia ser a solução, porém estava com dor de cabeça de tanto alinhavar as palavras. Chegaram os fiéis. Sentaram-se em seus lugares. Tudo como sempre. Mas... e as corujas? Começou a discursar e os dois homens discutiam política, as velhas olhavam-no céticas, o jovem casal lá no fundo se beijava. Padre Chiquinho parou de falar, o rosto congestionado pela raiva: – Fora todos vocês! Fora da minha igreja! Os dois homens deram de ombro e saíram discutindo política, as velhas debandaram com muxoxos nos lábios secos, o casal de namorados dirigiu-se para o breu sob a copa das árvores. A igreja ficou vazia e padre Chiquinho sentiu todo o peso da imensa solidão despencar em suas costas. Então olhou para a escada que levava até o campanário e sentiu uma dolorida vontade de subir e chamar uma nova família de corujas...