Minha amiga Maria

"E como é terrível não ter opinião!"

Tchekhov

Quando vi Maria pela primeira vez e deparei-me com seu olhar, deu-me vontade de abraçá-la para que chorasse no meu ombro.

Mas havia algo diferente nela. Observei-a com mais atenção querendo saber tudo sobre ela sem nada perguntar.

Foi num debate sobre literatura. Não entendo dessas coisas e nem sei o que fazia lá. Acho que o destino assumiu o controle dos meus passos.

Sentada como se estivesse em casa conversando com velhos amigos, Maria parecia tão dona de si! As pernas cruzadas com elegância natural e o rosto agradável pousado na mão mostravam que nada atrapalhava sua vida naquele momento. Os cabelos pareciam dizer: “Esta cabeça é livre!” e os olhos, discretamente, não perdiam nenhum momento do ambiente, nenhum pensamento talvez.

O assunto exigiu sua intervenção e a precisão das suas palavras me encantou. A voz melodiosa e firme deixava claro que tinha certeza do que dizia. Como ela se mostrava segura!

Já estava tarde e era hora de ir embora. Aproveitei a chance para despedir-me, desejar uma boa semana, sei lá, queria mesmo era chegar perto. Ela sorriu e fiquei sem saber o que fazer, o que dizer!

Uma dúvida surgiu: os olhos são mesmo a janela da alma? A vontade de oferecer meu ombro para que chorasse cedeu lugar à vontade de abraçá-la e dizer: “Muito obrigado!”

Estendeu-me sua mãozinha de fada e eu apertei-a com a doce alegria de criança que ganha um carinho. Foi como se uma energia carregada de partículas elétricas passasse pelo meu corpo todo e saísse por onde entrou.

Puxei assunto e Maria alimentava a conversa que ficava cada vez mais animada e não íamos embora. Quem estava perto poderia imaginar que já nos conhecíamos havia tempo.

Surgiu daquele encontro um afeto tão... sei lá... tão especial. Nos falamos no dia seguinte e assim foi pela semana a fora, até que saímos na sexta-feira. Aos poucos nos conhecíamos e nossa amizade crescia rápido.

Maria era capaz de falar horas sobre qualquer assunto que surgisse e meus olhos brilhavam ao ouvi-la discorrer com tanta propriedade sobre coisas que, para mim, eram bichos de setenta e sete cabeças. E a admiração de antes começava a confundir-se com veneração.

Um dia, inesperadamente, ela falou:

— Camila, você precisa pensar com sua própria cabeça, menina! Não repita tudo o que eu digo. Você precisa ter opinião própria!

Fiquei arrasada! Precisava seguí-la e não andar ao seu lado e Maria parecia não compreender isso. Aquelas palavras ecoavam obstinadamente na minha cabeça de papagaio e eu duvidava delas. Mas se era Maria quem dizia devia ser verdade e comecei a praticar sua lição.

Que coisa surpreendente era aquilo de ter opinião própria! Era como se eu fosse um passarinho quebrando a casca do ovo, morrendo de medo e de curiosidade, sem penas, um bichinho horroroso. Depois as penas começaram a crescer e me deu uma vontade louca de voar.

Mas antes de sentir o vento fazendo carinho em minhas asas, num vôo bem alto, senti ele dando doloridos beliscões na minha arrogância. A verdade é que eu continuava um papagaio com máscara de inteligente, maquiando as opiniões dela como se fossem minhas.

Aí Maria ficou irritada de verdade:

— Você parece uma borboleta!

— Nossa! Eu? Uma borboleta?

— Não é um elogio não!

— Não?

— Estou dizendo que você é bonita, mas tem uma cabecinha assim ó! Precisa ser mais inteligente, menina!

Fiquei magoada! Mas a veneração me fez assimilar, ou pensar que havia assimilado, aquela crítica tão dura. Pensei então que, se dividisse meu tempo entre conversar e ler, poderia ficar um pouco mais inteligente, mas não era bem assim. Não entendia muito o que os livros diziam e percebi que repetia o que Maria dizia sem entender também.

Talvez ela entendesse tanto das coisas porque fazia mais do que falava e só percebi isso quando a poeira do deslumbramento assentou e pude admirar uma Maria nua, despida do véu da veneração.

Seus maiores feitos eram inspirados em coisas insignificantes para o resto do mundo, mas que para ela faziam diferença. Pulsava uma bondade no que fazia, sempre pensando se alguém poderia se beneficiar daquilo, e seu respeito pela pouca natureza existente na cidade grande me emocionava!

Evoluí como mulher por conviver com Maria mas não me tornei tão forte quanto gostaria para nocautear o sofrimento. Nunca foi fácil ser mulher e parece que nunca será!

Passei a semana inteira muito triste, sem saber por quê. Um nó se atava por dentro da minha garganta e eu chorava, chorava e chorava. A verdade é que a tristeza não tinha motivo, apenas estava lá.

Era uma noite morna de verão e fui até a casa da Maria. O jardinzinho da frente parece encantado e nele habitam muitas borboletinhas e abelhinhas, um enorme arbusto de perfumados lírios, e outras plantinhas meigas. Às vezes tinha a impressão de ver gnomos e fadinhas se escondendo do meu olhar maravilhado.

Ela atendeu-me com seu sorriso que desmentia o olhar, abraçou-me como se não me visse há um mês e puxou-me para dentro. Segui atrás dela até seu quarto e, enquanto andava, ela deixava para trás um rastro de estrelinhas.

Ainda no corredor uma lágrima saltou. Chegando ao quarto sentei-me na cama e fiquei olhando para o chão e as lágrimas surgiam incompreensíveis.

— O que aconteceu, Camila?

Aí soltei a coleira do pranto e ele correu solto, selvagem. Maria sentou-se ao meu lado e passou o braço pelas minhas costas e eu deitei a cabeça no seu ombro amigo. O perfume dos lírios do jardim entrava pela janela aberta do quarto.

Momentos antes, envolvida por aquela fragrância dinâmica, Maria sentiu que algo aconteceu no seu coração. Era como se uma ameba virasse vaga-lume e crescesse até iluminar que nem um farol no mar e explodisse numa super-nova.

Pegou a caneta e rabiscou um poema com o desejo de que fosse capaz de acender uma vela na caverna escura do sofrimento de alguém, que lançasse no ar notas musicais de uma harpa de ouro e que fosse tão suave quanto uma borboleta amarela e tão imponente quanto a aurora, que todos duvidassem dele.

— Olha só o que eu escrevi pra você... — pegou o papel e declamou o poema.

Mal pude acreditar naquela beleza, na música, na doçura. O significado que aquele gesto teve para mim foi tão marcante! Era uma coisa que só uma amiga de todas as horas teria coragem de fazer. Mais da metade da tristeza foi embora tão rápido quanto chegou.

Essa é minha amiga Maria. Tão jovem quanto eu mas é uma mulher incrível e inspiradora, tão doce e forte. Queria ser segura como ela, dona de mim, eu mesma... Será que um dia serei alguma coisa parecida? Não sei...

Só sei que posso me gabar de ter pelo menos uma opinião própria: que a verdadeira janela da alma é o sorriso.

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 19/01/2007
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