Meninos de rua: a religião
A vida atormentada destes pequeninos se ajusta às diversas formas de comportamento em nossa sociedade. Uma sociedade paralela se desenvolve, com hábitos e crenças. Seu cotidiano expressa toda a dor sentida calada, sob o sol e a chuva da cidade. Seus pontos de devoção, nesta cruenta vida, sei lá, deve começar pelas procissões. Rendem sua fé a um deus mudo, escondido não sei onde.
O pânico, o medo se espalham nas ruas. Lá vem nossos cristãos. Nossos miúdos cristãos. Pau na mão, um barulho que mais parece um urro de dor. Rasgam avenidas. Fazem pedestres mudarem de calçada. O santo ainda não está ali. Parece que estão à procura de seu santo diário. Falei de vida efêmera letras atrás, lá na família. Seus santos também. Mudam como os santos católicos, um para cada ocasião. O ar de tristeza que se reflete nas faces dos santos apostólicos romanos, não define a pobreza e a rudeza dos santos da rua, às vezes eles sangram mesmo.
Lá vem a procissão. Tem beatos de todos os tamanhos. Compenetrados em suas orações diárias, cobrem a massa trabalhadora que busca incansavelmente não participar daquele cortejo particular. Arrecadam bolsas, celulares, carteiras, jóias, colares, relógios, tudo em nome da santa missão evangelizadora e miúda que insiste em crescer e se multiplicar. Convidam a todos. A recusa, uma desfeita. Emocionados, motoristas fecham os vidros de seus carros, enquanto reluzem velas de metal, serpenteiam hóstias afiadas. O murmúrio é grande. A procissão sai de um canto a outro da cidade. Rápida, muitas vezes se dispersa para ganhar corpo mais a frente. É o Estado tentando organizar o cortejo. Soltam “fogos” para saldar a procissão sem santo – onde está o santo?
Os fogos continuam. Um acidente. De repente os fogos atingem o grande cortejo que desfila veloz. A correria se generaliza, cristãos e “cristãos” se espalham num gesto de segurança. Há uma grande comoção. Aos poucos, vai se tornando nítida a imagem principal. O desfecho é caótico. E, de repente descobrem o santo... Lá está ele estendido no chão. Em meio aos fogos deixaram cair o santo. Pobre imagem. Quebrada, agora jorrava uma rubra água. Os fogos fizeram graves ferimentos. O santo permanecia inerte, os ruídos e gemidos não eram dele. A família se esfacelava mais uma vez. Fazia tão pouco tempo que um santinho havia partido. A indignação violentamente toma corpo nos novos rebentos. Seu modo de expressão, uma facada a mais naqueles que se indignam com tal situação.
Aos poucos o cortejo vai retornando. Fazem círculo ao redor do santo morto. Começam uma nova novena. Lágrimas correndo o corpo, pingando o santo, o ritual vai se repetindo. Lençol branco, digno da imagem, cobre o magrelo corpo estendido. Lençol branco, tão branco que sua dignidade não havia recebido um de presente nos seus poucos anos de vida. A família, reunida ali, prova que santo também tem família. A aglomeração não compreendia mais que um metro e meio de tão pequenino o nosso santo. Chegam as velas. A religião se consolida em mais uma passagem de suas ínfimas vidas. Este não ressuscitará no sétimo dia. Acenderam as velas, não rezaram o pai nosso e caminharam em “paz”.