CONTO – Nobre, uma lição de vida
Nobre, uma lição de vida – Parte II
...Apresentara-se o mais rápido possível, a fim de ser submetido a exame de saúde, complementar a documentação e assumir logo o seu lugar. Fora designado para servir em Limoeiro, agreste de Pernambuco, pertinho do Recife, sua terra. Confessou que ficara com medo, depois da decisão, por isso que não tinha prática alguma em trabalho de banco, ainda mais do governo, mas que assumiria com vontade, com toda a garra de quem queria crescer na vida.
Pois bem, tudo pronto, viajara a Limoeiro em 23.03.1962, para se apresentar ao seu novo patrão, que nunca conheceu, disse-me ele (assumiu no dia seguinte). Conseguir uma hospedagem foi muito fácil, pois a república dos bancários estava repleta de vagas. Onde o dinheiro para comprar cama e demais objetos necessários, pensara ele. Tomou a iniciativa, foi ao comércio (na época o bancário do BB tinha crédito) e falou numa loja sobre sua situação. As portas se abriram imediatamente. Comprou uma cama patente (daquelas de molas, faixa azul), travesseiros, lençóis, etc. Tudo fiado. O Sr. João, dono da empresa, tentou chamar um rapaz para levar o frete, mas o Nobre recusara, porque estava sem grana pra pagar. Aí resolveu colocar tudo na cabeça e, ele mesmo, levar a bagagem até a sua nova residência, que era justamente no primeiro andar do prédio do banco, na Praça da Bandeira, ao lado do Colombo Esporte Clube.
Iniciou na Carteira Agrícola, na época em que o comunista e doutor Arraes era governador do Estado. Aos poucos foi subindo de posto, embora como auxiliar, carreira imediatamente inferior àquela de escriturário. De logo, apareceu uma vaga de caixa. Consultados quase todos os funcionários, ninguém aceitou porque era trabalho muito duro, pois só existia uma vaga para atender a milhares de pessoas diariamente. É que todos preferiam ganhar prorrogação de expediente ao invés da pequena comissão que o cargo concedia. Pegou a oportunidade logo que consultado pelo gerente. Começou firme, era magrinho, morava pertinho do banco. Na época já havia casado. Sua mulher cansou de levar lanche para que não viesse a ter um “troço”, mas não havia tempo pra comer, a clientela era enorme, de endoidar. Um mundo de agricultores a tomar empréstimos agropecuários... E o lanche sobrava, ficava no mesmo balcão onde ela sempre o deixava. Também corria o perigo de faltar dinheiro na caixa, na hipótese de distração, ocorrência desinteressante porque a cobertura tinha de ser imediata.
Havia passado oito meses de sua investidura temporária no caixa. É que o seu titular, Sr. Wálvisson, tinha retornado da licença que o banco lhe dera para cuidar dos pulmões afetados por um princípio de tuberculose, doença muito comum naquela época. Além do mais o colega era dado às benesses das noitadas da cidade. Novo, até certo ponto metido a bonitão, atleta e desenrolado, nunca se viu cara de tanta sorte para conseguir namorar as meninas mais lindas do lugar! Terminara o nosso amigo Nobre retornando à Carteira Agrícola, mas com uma sorte medonha. Não é que havia uma vaga comissionada de fiscal da CREAI, sigla oficial do setor! Mais uma vez, ninguém quis nada, e ele enfrentou o desafio, até porque já tivera passagem pela carteira, contatando com clientes, elaborando financiamentos, etc. E tinha o dinheiro extra que o cargo oferecia. Serviço de campo, tomando poeira, estradas esburacadas, jipe velho caindo os pedaços, mas fazer o quê? Bola pra frente. Tinha casado há pouco tempo e as dívidas precisavam ser pagas.
Mas a alegria durou pouco. O serviço era muito mais para cobrar dívidas vencidas de rurícolas que não pagavam seus débitos há algum tempo. Uma bagunça. Dinheiro emprestado de maneira muito fácil, com a colaboração do GEPA – Grupo Executivo da Produção Agrícola -, amparado pela Secretaria da Agricultura do Arraes, um homem cearense de muita força no governo Goulart, que casava e batizava em favor dos menos favorecidos. Pois bem, veio o primeiro dia de fiscalização, muitos quilômetros rodados, as pequenas propriedades eram longe uma das outras.
A maioria dos agricultores trabalhava com carta de anuência dos grandes proprietários (uma autorização), poucos tinham terra, isso era coisa pra gente grande. Todavia, o BB fora criado para incrementar a produção de bens do nosso país, pois sendo o agente financeiro o governo e caixa do tesouro nacional, praticamente nadava em dinheiro, e os pequenos agricultores não proprietários tinham direito a empréstimos para plantio de suas lavouras com a ajuda de membros da família (e agora vem esse governo pregar que é autor da medida, que apelidou de agricultura familiar).
Então, disse-me ele: “Quando retornei à sede no final da tarde, quase noitinha fui direto ao gabinete do gerente para uma conversa; cheio de dedos, com medo, acanhado, criei coragem e falei que tinha problemas de alergia a poeira desde criança e a recomendação médica era que evitasse provocar tal contato; espirrava demais, difícil calcular quantas vezes por dia, e a cada espirro uma voz dizia: Deus te salve”. O senhor Guerra, seu gerente, ficou convencido da verdade, que fora inventada pelo Nobre.
A verdade mesmo é que quando chegou à casa de um dos devedores pobre, faminto, seis filhos magérrimos, um ainda mamando, bebê, e outro já encomendado, o dono da casa o chamou até a cozinha e lhe mostrara a panela onde fazia o almoço: Feijão puro, sem charque, sem tempero, sem nada, água barrenta. Aquilo gerou um calafrio, uma piedade tão grande em seu coração, lhe tocara tão forte que, mesmo precisando ganhar mais (as viagens davam direito a transporte, diárias e ajuda de custo, essas eram as vantagens), resolvera entregar o cargo. Não aguentaria por muito tempo, disso ele tinha certeza. Abdicou.
Ficara se interrogando a si próprio como um banco do governo tinha coragem de cobrar dívidas de quem praticamente já estava morto? Ora, nem safra houvera nos dois últimos anos, em face das estiagens! Quase que ele arriscara dizê-lo ao gerente, mas não foi bobo.
As horas se passaram despercebidas. Chegara o momento do almoço. Barriga cheia tomou uma soneca e, à tardinha, retornou com a promessa de que voltaria a nos visitar.
Bem, por hoje é só. Até a próxima.
Pois bem, tudo pronto, viajara a Limoeiro em 23.03.1962, para se apresentar ao seu novo patrão, que nunca conheceu, disse-me ele (assumiu no dia seguinte). Conseguir uma hospedagem foi muito fácil, pois a república dos bancários estava repleta de vagas. Onde o dinheiro para comprar cama e demais objetos necessários, pensara ele. Tomou a iniciativa, foi ao comércio (na época o bancário do BB tinha crédito) e falou numa loja sobre sua situação. As portas se abriram imediatamente. Comprou uma cama patente (daquelas de molas, faixa azul), travesseiros, lençóis, etc. Tudo fiado. O Sr. João, dono da empresa, tentou chamar um rapaz para levar o frete, mas o Nobre recusara, porque estava sem grana pra pagar. Aí resolveu colocar tudo na cabeça e, ele mesmo, levar a bagagem até a sua nova residência, que era justamente no primeiro andar do prédio do banco, na Praça da Bandeira, ao lado do Colombo Esporte Clube.
Iniciou na Carteira Agrícola, na época em que o comunista e doutor Arraes era governador do Estado. Aos poucos foi subindo de posto, embora como auxiliar, carreira imediatamente inferior àquela de escriturário. De logo, apareceu uma vaga de caixa. Consultados quase todos os funcionários, ninguém aceitou porque era trabalho muito duro, pois só existia uma vaga para atender a milhares de pessoas diariamente. É que todos preferiam ganhar prorrogação de expediente ao invés da pequena comissão que o cargo concedia. Pegou a oportunidade logo que consultado pelo gerente. Começou firme, era magrinho, morava pertinho do banco. Na época já havia casado. Sua mulher cansou de levar lanche para que não viesse a ter um “troço”, mas não havia tempo pra comer, a clientela era enorme, de endoidar. Um mundo de agricultores a tomar empréstimos agropecuários... E o lanche sobrava, ficava no mesmo balcão onde ela sempre o deixava. Também corria o perigo de faltar dinheiro na caixa, na hipótese de distração, ocorrência desinteressante porque a cobertura tinha de ser imediata.
Havia passado oito meses de sua investidura temporária no caixa. É que o seu titular, Sr. Wálvisson, tinha retornado da licença que o banco lhe dera para cuidar dos pulmões afetados por um princípio de tuberculose, doença muito comum naquela época. Além do mais o colega era dado às benesses das noitadas da cidade. Novo, até certo ponto metido a bonitão, atleta e desenrolado, nunca se viu cara de tanta sorte para conseguir namorar as meninas mais lindas do lugar! Terminara o nosso amigo Nobre retornando à Carteira Agrícola, mas com uma sorte medonha. Não é que havia uma vaga comissionada de fiscal da CREAI, sigla oficial do setor! Mais uma vez, ninguém quis nada, e ele enfrentou o desafio, até porque já tivera passagem pela carteira, contatando com clientes, elaborando financiamentos, etc. E tinha o dinheiro extra que o cargo oferecia. Serviço de campo, tomando poeira, estradas esburacadas, jipe velho caindo os pedaços, mas fazer o quê? Bola pra frente. Tinha casado há pouco tempo e as dívidas precisavam ser pagas.
Mas a alegria durou pouco. O serviço era muito mais para cobrar dívidas vencidas de rurícolas que não pagavam seus débitos há algum tempo. Uma bagunça. Dinheiro emprestado de maneira muito fácil, com a colaboração do GEPA – Grupo Executivo da Produção Agrícola -, amparado pela Secretaria da Agricultura do Arraes, um homem cearense de muita força no governo Goulart, que casava e batizava em favor dos menos favorecidos. Pois bem, veio o primeiro dia de fiscalização, muitos quilômetros rodados, as pequenas propriedades eram longe uma das outras.
A maioria dos agricultores trabalhava com carta de anuência dos grandes proprietários (uma autorização), poucos tinham terra, isso era coisa pra gente grande. Todavia, o BB fora criado para incrementar a produção de bens do nosso país, pois sendo o agente financeiro o governo e caixa do tesouro nacional, praticamente nadava em dinheiro, e os pequenos agricultores não proprietários tinham direito a empréstimos para plantio de suas lavouras com a ajuda de membros da família (e agora vem esse governo pregar que é autor da medida, que apelidou de agricultura familiar).
Então, disse-me ele: “Quando retornei à sede no final da tarde, quase noitinha fui direto ao gabinete do gerente para uma conversa; cheio de dedos, com medo, acanhado, criei coragem e falei que tinha problemas de alergia a poeira desde criança e a recomendação médica era que evitasse provocar tal contato; espirrava demais, difícil calcular quantas vezes por dia, e a cada espirro uma voz dizia: Deus te salve”. O senhor Guerra, seu gerente, ficou convencido da verdade, que fora inventada pelo Nobre.
A verdade mesmo é que quando chegou à casa de um dos devedores pobre, faminto, seis filhos magérrimos, um ainda mamando, bebê, e outro já encomendado, o dono da casa o chamou até a cozinha e lhe mostrara a panela onde fazia o almoço: Feijão puro, sem charque, sem tempero, sem nada, água barrenta. Aquilo gerou um calafrio, uma piedade tão grande em seu coração, lhe tocara tão forte que, mesmo precisando ganhar mais (as viagens davam direito a transporte, diárias e ajuda de custo, essas eram as vantagens), resolvera entregar o cargo. Não aguentaria por muito tempo, disso ele tinha certeza. Abdicou.
Ficara se interrogando a si próprio como um banco do governo tinha coragem de cobrar dívidas de quem praticamente já estava morto? Ora, nem safra houvera nos dois últimos anos, em face das estiagens! Quase que ele arriscara dizê-lo ao gerente, mas não foi bobo.
As horas se passaram despercebidas. Chegara o momento do almoço. Barriga cheia tomou uma soneca e, à tardinha, retornou com a promessa de que voltaria a nos visitar.
Bem, por hoje é só. Até a próxima.
Ansilgus
Em construção/revisão
Foto do GOOGLE - Caso haja direito autoral peço o favor de me avisar,a fim de retirar a foto.