Pedro, o assobiante
Uma das coisas mais difíceis que venho encontrando, nessa minha nova atividade de contador de histórias, tem sido caracterizar e descrever os meus personagens. Um sinal, um olhar diferente, um modo de andar, tudo isso diferencia uma pessoa de outra, daí a minha dificuldade.
No caso de Pedro, que eu crismei de o assobiante, não foi difícil. Baixo, menos de um metro e sessenta centímetros, de cor parda, se é que podemos classificá-lo assim, já que nos censos recentes, por causa das políticas afirmativas, essa categoria de raça vem desaparecendo das estatísticas, pesando mais de oitenta quilos, ostentando proeminente barriga, aparência de idade acima da real, que eu me arrisco a informar como sendo 54, trajando quase sempre calça jeans desbotada, chinela de couro cru, já que as havaianas, depois da massificada propaganda na televisão, ficaram proibitivas aos seus parcos salários, Pedro representa a maioria dos habitantes do alto sertão cearense.
Este personagem o conheci defronte do edifício onde moro. A partir de certo dia, que não sei precisar quando, fui acordado exatamente às seis horas da manhã, ouvindo estranha música sendo assobiada. Levantei-me e percebi de pronto a figura descrita, que caminhava lentamente pela calçada oposta à do meu apartamento. Esperei que ele se fosse e voltei a dormir.
No dia seguinte e em todos os outros dias das semanas que se seguiram e até hoje, a mesma música, se é que posso chamar aquilo de música, vem me acordando sempre às seis da manhã. Eu sempre me levanto, vou para a janela e fico vendo-o sumir-se quando dobra a próxima esquina.
Ontem, antes do seu aparecimento, resolvi descer e tentar uma aproximação com ele. Minha curiosidade pela vida de pessoas que me chamam a atenção é quase doentia. Não me contive mais uma vez e fui conversar com o assobiador. - Posso conversar um pouco com o senhor? - perguntei, já preparando outro argumento caso a resposta fosse não.
Ele olhou para mim com ar desconfiado, sem parar de andar, e foi dizendo: - Eu não tenho nada, celular, relógio e muito menos dinheiro!
Desconcertado eu apenas disse-lhe que queria conhecê-lo, queria saber sobre a música que ele alegremente assobiava todas as manhãs quando passava pela frente do prédio onde moro.
Ele parou, olhou-me dos pés à cabeça e perguntou para que eu queria saber sobre sua vida, sua história, que segundo ele nada tinha de interessante. Argumentei que gostava de ouvir histórias, mesmo aquelas não interessantes. Era um vício meu, que ele não seria prejudicado com isso.
Encostando-se ao muro que cerca o colégio localizado nas proximidades de minha residência, ele começou a falar: - Moço, meu nome é Pedro, em homenagem a São Pedro, nome dado pela minha madrinha. Eu sou do interior, do sertão mesmo, brabo e quente. Lá quase não chove e é difícil chegar lá, não tem estrada asfaltada e a que passa perto fica a mais de 300 léguas de distância, nós só chega até ela a pé, de burro, jumento ou cavalo. Quem tem moto vai de moto, quem tem carro vai de carro, só aqueles grandes, que eles chamam de tração nas quatro rodas. É muito buraco e muito estreita, com o mato tomando de conta dela. Quem mora lá só vai para a cidade em dia de feira vender o que plantou, comprar ou trocar o que sobra pelo que precisa. Lá também não tem escola, só depois de três léguas, e não é boa, não tem cadeiras pras criança, o alimento é pouco e não tem condução, as crianças cortam caminho pelo meio do mato, da caatinga.
- E por que você veio para Fortaleza, faz muito tempo? Quantos anos você tem? – entrei direto em sua vida.
- Em 1979 eu tinha quinze ano e já trabalhava na roça, ajudando o pai a plantar milho e feijão, isso quando chovia. Entre esse ano e 1984 o nosso sertão passou quase seis anos em seca, a água que caía não moiava o chão, que estava duro e quebrado, não adiantava plantá, pois nada vingava. Foi uma fome danada, perdi dois irmãos pequenos. A gente era doze, pai, mãe e dez filho. Em 1983 num aguentamo e deixamo tudo pra lá e rumamo para a capital.
- E as terras de vocês, ficaram com quem? - curioso, procurei saber.
- Meu vô morava do lado e como era véio não aguentava a viagem, ele ficou tomando de conta, ele e dois irmãos também de idade mais avançada.
Pedro, um pouco cansado, resolveu sentar-se no meio fio, para isso procurou uma sombra sob um fícus-benjamin, árvore tropical, de folha perene, originária do sudeste asiático, que orna muitas ruas de Fortaleza. Eu o segui e repeti seu gesto, sentando-me ao seu lado.
Agora, mais confortável e descontraído, Pedro deu continuidade a sua história:
- Foi uma viagem de mais de dois dia, de pau-de-arara ou misto, como é conhecido em muitas cidades do interior. É um caminhão onde as pessoas viajam sentadas sobre tábuas colocadas atravessando de um lado ao outro da carroceria e com uma cobertura de lona que protege as pessoas do sol. Vinha de vinte a trinta pessoas, fome e sede, não havia mais dinheiro, só deu para pagar a passagem.
Um pouco cansado, pela noite trabalhando como vigia de uma obra em construção, Pedro fazia pausas em sua fala, tentando relembrar aqueles dias.
- Quando chegamo em Fortaleza, eu e o pai, a gente foi pra rua; primeiro pedir emprego, depois pedir esmola, pois a fome apertava. Minha mãe e os irmãos mais novos ficaram numa pequena casa lá na Floresta, caminho para Caucaia, cidade próximo a Fortaleza. Era uma pequena casa de uma irmã da mãe, que já estava aqui há mais de quatro anos. Passamos quatro dias dormindo na rua, até que o pai ficou doente, tive de deixar ele na casa da tia, junto da mãe. Levei o pouco dinheiro da esmola recebida e entreguei para a mãe, para a comida deles. A mãe, tava lavando roupa para umas freguesa e também já tinha juntado algum dinheiro. Minha tia morava sozinha, não tinha filhos e o marido tinha viajado para São Paulo para arranjar emprego. Já tinha dois anos por lá e nada de notícias, nem o endereço ela sabia.
Sem perder o fôlego, Pedro, como não querendo perder também o fio da meada, isto é, de sua história, continuou falando:
- Pois bem, deixei toda a minha famia lá e vortei para Fortaleza. Fui guardar carro, aí eu lavava e tomava de conta de carro no meio da rua, ganhava sempre uma moeda, pois eu procurava ser simpático com as pessoa. Um dia um freguês perguntou se eu não queria tomar de conta da casa de praia dele e eu fui. Lá para o lado de Iparana, só que não durou muito tempo, com seis meses o mar derrubou toda a casa e fiquei sem emprego e o patrão sem a casa de praia. Vortei para a rua, para lavar carro. Um senhor, dono de ônibus, de quem eu lavava o carro, me levou para lavar os seus ônibus, da sua firma. Não era carteira assinada, mas ele me pagava um dinheiro fixo, por semana. Ele gostou de mim e eu passei a dormir num quarto nos fundos da casa dele. Ele tinha uma filha muito bonita e a janela de seu quarto dava rente com o meu. Tinha umas árvore que atrapalhava a minha vista, mas dava para ver quando ela trocava de roupa, sempre de janela aberta, pois o muro do quintal da casa era muito alto e não dava para ver nada de fora para dentro da casa. Quando eu estava no meu quarto ficava sempre de luz apagada, para ela não me vê.
Depois de uma pausa para respirar e se deliciar com aquelas lembranças sobre a filha do patrão, Pedro continuou, demonstrando satisfação e alegria naquela parte da história: - De lavador de ônibus passei a ser cobrador, já conhecia o bastante sobre dinheiro, sobre troco e todas as parada que os ônibus da linha fazia. Nas folga o patrão me deixava percorrer as linha dos ônibus dele. Como não gastava quase nada passei a juntar um dinheirinho a mais, que sempre levava um pouco para a minha família, que agora morava sozinha na casa deixada pela tia, que foi procurá o marido em São Paulo. Eu já tava trabalhando para o patrão e morando em sua casa fazia mais de sete ano. Tudo ia bem, só que meu pai morreu em 1987, de pneumonia e minha mãe voltou para a terra dela, lá no sertão brabo, que tava chovendo bastante. Seus pais e tios também tinham morrido e ela resolveu tomar de conta de toda a terra e do pouco gado que tinha lá. Os menino, agora de maior, já podiam levar a roça com os braço deles.
Eu já estava cansado daquela posição em que me encontrava, mas cada vez mais interessado pela história de Pedro. Então lhe fiz um convite, perguntando antes se ele não tinha nada para fazer naquele momento. Encorajado pela negativa, propus que fôssemos até a minha casa e lá, à beira da piscina, continuássemos aquele papo agradável. Levantamo-nos os dois e nos dirigimos para a área de lazer do edifício, onde encontraríamos duas cadeiras e uma mesa, e, protegendo-nos do sol, uma sombrinha de napa colorida. Sentamos e perguntei, - podemos continuar? Sem delonga e balançando a cabeça afirmativamente ele continuou:
- Eu não tinha namorada, pois me satisfazia vendo a filha do patrão todos os dias, e às vezes até completamente nua. A paixão me sufocava, mas eu não podia chegá perto dela, ela nem dava fé de mim, nem me dirigia a palavra, o que aumentava a minha vontade de abraçá e beijá ela. Num domingo ela ficou sozinha em casa, seus pais foi pra um churrasco na casa de praia dum amigo deles. Ela acordou mais cedo que o de costume e eu fiquei espiando. Lá pras dez horas da manhã percebi outra pessoa em seu quarto, era o seu namorado e ele estava completamente pelado. Eu sempre ouvia o pai de Amanda, agora com dezessete anos falá que não queria saber de homem no quarto dela, principalmente, o namorado. Sua mãe falava que sexo só dispois do casamento. O sangue me subiu à cabeça, eu tremia feito vara verde de raiva e não me veio outra coisa senão ir até o quarto dela e colocar aquele garoto pra fora de casa. Não deu outra, foi um escândalo da mulesta, perdi o emprego e o quarto de dormir.
Bastante preocupado, perguntei para onde ele foi, o que ele fez depois disso. Seu semblante se fechou, parecia que imensa dor invadia todo o seu corpo. Ele se contorceu e depois ficou imóvel por alguns minutos. Pedi ao pessoal de casa que me trouxesse uma jarra de suco de maracujá, para acalmá-lo.
- Saí de lá e fui para um bar – disse ele com amargura. Nunca havia bebido na vida. Lá encontrei alguns home que estavam passando pela mesma angústia que eu, todos bêbado e de cara sofrida. Era noite de domingo e as pessoa equilibrada já estava em suas casa, preparando seu canto de dormir. Nós, os desatinado, procuravam os bares para afogar as mágoa, as desilusãos, frustaçãos, os descaminhos. Bebi muito e quando acordei ainda estava na mesa do bar, já era segunda-feira, oito da manhã. Olhei para os lados e encontrei todos os colegas de infortúnio da noite anterior. Era um bar de beira de estrada, aberto 24 horas do dia, não sei como fui parar lá. Passei a beber todos os dia, não me preocupava mais arranjar outro emprego, não dominava minhas ações, só me entregava à bebida. Foram quase dois anos assim, perambulando pela sarjeta, pelos bares, procurando a quem me pagasse uma bebida.
- Com se deu a sua recuperação? - perguntei, aflito. A descrição daquelas passagens estava me deixando também bastante angustiado. Eu me perguntava como pode um homem se entregar a uma vida desregrada por causa de um amor não correspondido, e nem mesmo sabido pela pessoa amada.
- Certo dia uma senhora se aproximou de mim e perguntou se eu tinha família. Como eu não respondi, ela pegou em meu braço e me levou até um carro parado próximo. Levou-me até uma casa, que depois fiquei sabendo tratar-se de um abrigo da prefeitura, onde me deram banho, fizeram minha barba e me alimentaram. Fiquei nesse abrigo durante dez dia, não tinha força para me afastar dali. Depois de completamente recuperado em minhas força, a senhora que me acolheu perguntou se eu queria trabalhar como vigia de obra de construção, lá eu teria alojamento e alimentação todos os dia. A obra era um prédio de vinte andá, e o responsável era o seu marido, engenheiro civil e chefe do departamento de engenharia de uma grande construtora aqui no Ceará. Até hoje, graças a Deus, sou vigia de obra, só trocando de endereço quando a obra é entregue.
E sobre a música que o senhor assobia todas as manhãs, como é mesmo o nome dela?
- Não tem nome não, senhor. Eu fico assobiando simplesmente. Quando não estou trabalhando ou fazendo qualquer serviço extra eu assobio para não pensar em besteira, não pensar nas coisas que atrapalharam a minha vida. E tem dado certo, desde aquele dia que deixei a casa de abrigo, nunca mais coloquei um gole de pinga na boca. Assobiar quando não estou fazendo nada foi uma recomendação da senhora que me recolheu da rua.