Fraudando concurso público

Menina inteligente, leitora compulsiva e aluna exemplar, Mariazinha, desde criança, sonhava morar em Fortaleza. Essa paixão surgiu quando, acompanhada do pai, visitou a tia que já morava um bom tempo na capital. Deslumbrada pelo que via durante um passeio à beira-mar, a menina, vinda do sertão brabo, confidenciou à tia que um dia iria morar na cidade do rio salgado e grande, que tinha onda e fazia espuma igual a leite mungido. A tia achou graça daquela definição do Mar de Iracema e falou:

- Quando você completar 18 anos e tiver terminado o segundo grau, venha morar comigo. Aqui você pode fazer um concurso, arranjar um emprego, ganhar seu dinheirinho e realizar seu sonho.

- Obrigada tia, vou sempre me lembrar de sua oferta. Estudarei com mais vontade, desde já vou preparar-me para conseguir um bom emprego em Fortaleza, quando completar 18 anos.

Aquela conversa não saiu da cabeça da pequena interiorana. Passou a sonhar com o dia em que deixaria a família rumo a Fortaleza. Seu pai não precisaria dela para a lavoura, pois tinha cinco irmãos que dariam conta do recado. Sua mãe também não sentiria sua falta, Josilene e Marinelda, já bastante crescidas, ajudavam nas tarefas de casa. Também era só ela que gostava de estudar naquela casa.

Os dias, meses e anos depois daquela visita à casa da tia Francisca custaram a passar. Ela notava que estava crescendo, ficando mocinha, mas os 18 anos não chegavam. A cada dia a ansiedade aumentava, uma sensação de receio e de apreensão, sem causa evidente, tomava conta da agora adolescente e formosa Mariazinha. Passou a agregar fenômenos somáticos como taquicardia, sudorese e outros sintomas, como prisão de ventre e, às vezes, náusea.

Ela, entretanto, continuava uma aluna exemplar, seus professores lhe garantiam futuro promissor. Seus conhecimentos estavam muito além dos de qualquer pessoa de sua idade, e mesmo de boa parte da população de mais idade de sua cidade. Ela era o exemplo da cidade, até o Prefeito gostava de aparecer ao seu lado em qualquer solenidade oficial, embora sua timidez sempre a fazia se esquivar desses convites.

Na festa de formatura do ensino médio foi a oradora, brilhante, falou da cidade, de sua infância, adolescência e do que esperava para o futuro. Sua ida próxima para Fortaleza ocupou grande parte de seu discurso. Ao término, todos aplaudiram com entusiasmo e muitos dos presentes até ensaiaram discreto choro, já pensando na despedida da garota prodígio. Sua cidade fica muito distante da capital e todos sabiam que dificilmente ela retornaria àquele pequeno lugarejo. Talvez por alguns dias, em férias, nunca para retornar a viver lá.

No dia seguinte à festa de formatura, sua tia Francisca telefonou para o posto telefônico procurando por ela. Um mensageiro foi até à casa de Mariazinha informar que havia uma pessoa de Fortaleza que queria falar com ela. Como ainda dormia, demorou um pouco para ir ter com a tia, para saber o que ela queria.

No caminho, começou a imaginar que a tia quebraria a promessa e não mais a queria em sua casa. Chorou, diminuiu os passos, parou à porta do posto telefônico sem coragem de entrar para atender ao telefone. O desejo a empurrou para dentro daquela cabine velha e apertada. - Minha filha, arrume as malas e venha correndo para Fortaleza, vai haver concurso para o banco do governo e a inscrição termina terça-feira.

Eufórica, ela até esqueceu que dia era e falou para a tia que não daria tempo chegar a Fortaleza na data determinada. - Que nada, minha sobrinha. Hoje ainda é sábado, você pode pegar o ônibus de logo mais à noite e amanhã você estará aqui, disse-lhe a tia Francisca. Traga todos os seus documentos, você vai precisar deles. Consiga na escola declaração de que você já concluiu o segundo grau, exigência estabelecida no edital do concurso. Sem despedir-se, Mariazinha desligou o telefone e foi correndo para casa contar a notícia para os seus pais e demais membros da família.

Como era muito querida do pessoal da escola, conseguiu levar o datilógrafo para preparar a papelada, e a diretora que assinaria a declaração de conclusão de curso foi também.

Já em Fortaleza, a garota fez a inscrição, colocou o endereço da tia para receber informações, e ficou sabendo que o concurso seria no próximo mês. Pegou o programa, constatou que estava dentro dos seus conhecimentos e voltou para casa da tia, ficando até o final do concurso, quando retornou a sua cidadezinha, para esperar o resultado.

Passados dois meses, Francisca recebe uma ligação telefônica do banco, avisando que a senhora Maria Eleontina da Silva teria que comparecer ao departamento de pessoal da instituição bancária até quinta-feira, com todos os documentos, para receber instruções sobre sua contratação, já que ela passara no concurso, em terceiro lugar. Se ela não comparecesse àquela data, seria desclassificada.

- Hoje já é terça-feira, não ficamos sabendo que ela havia passado, não saiu nos jornais nem na televisão. Não recebemos nenhum aviso por escrito, como é que vocês querem que ela esteja aqui na quinta-feira? - perguntou Francisca. - Se ela não comparecer, perderá a vez, repetiu a pessoa do outro lado da linha.

Na segunda-feira ela já estava em Fortaleza. Foi uma viagem péssima, já que as sensações de ansiedade tomaram conta de seu corpo. Mais tarde foi ao banco e ficou sabendo da necessidade de entregar os documentos e exames médicos, urina, fezes, sangue e abreugrafia.

Urina, sangue e abreugrafia não foi problema. Já para a coleta de fezes, o “bicho pegou!”. Ela só não conseguia fazer “cocô”, tomou laxante, purgante e por recomendação da tia, bebeu muita água. Nada, a ansiedade aumentava, ela pensava: - Perder um emprego bom como esse por causa de um pouco de merda que teima em não sair, é o fim!

Foi ao médico, ele disse que não podia fazer nada, que era só esperar o laxante fazer efeito. E ele não fazia, ela não tinha tempo a esperar.

Todos da casa da tia Francisca estavam preocupados, angustiados mesmo, a menina do interior estava preste a ser derrotada pela falta de um pouco de merda. Não adiantava nada ter toda aquela inteligência, todo aquele conhecimento que lhe valeu o terceiro lugar no concurso; a bosta a derrotaria.

Usando de sua inteligência, tia Francisca apresentou sua ideia. - Mariazinha, vá buscar o frasco que o laboratório deu para colher a merda, ordenou a tia. Não será por falta dela que você vai perder esse emprego! Pegando o frasco, se dirigiu ao banheiro, demorou um pouco e ao retornar entregou o frasco, dizendo: - Vá imediatamente ao laboratório, peça que o exame seja feito com urgência e vá entregar ao departamento de pessoal do banco. E não se fala mais nisso, decretou Francisca.

Hoje, a sobrinha ocupa cargo de confiança nesse mesmo banco, venceu as suas angústias e se submeteu a sério tratamento contra constipação.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 24/02/2012
Reeditado em 23/03/2012
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