Gótica

Eu estava esperando minha próxima paciente, era uma terça-feira insossa, como todas as terças-feiras, ainda por cima estava tudo nublado, tornando o dia escuro como a noite. Analisei que o dia cinzento combinava com o perfil de minha nova paciente, olhando para uma foto dela, uma foto grande, de corpo inteiro, que se encontrava anexada ao relatório. Ela tinha os cabelos negros curtos, espetados para cima, formando quase um moicano, tinha um piercing no nariz, um piercing gigantesco, nada discreto. Inúmeros outros piercings subiam por suas orelhas. Seu rosto era muito pálido, fantasmagórico, contrastando com a boca pintada de negro. Embaixo dos olhos via-se uma pesada maquiagem púrpura, que enaltecia seus olhos azuis e a deixava com uma aparência tétrica. Sua roupa era toda negra. Ela usava uma minissaia de tecido fino, parecido com crepe, cheia de bordados, e um véu negro de organza, que saia da barra da saia e ia até a altura do joelho, taxinhas metálicas percorriam toda a lateral da minissaia, usava também um espartilho com grandes abotoaduras vermelhas. Estava segurando uma jaqueta, que parecia ser de couro, na mão esquerda. Na foto, percebia-se uma tatuagem que subia pelo ombro direito, não dando para saber o que era e nem o tamanho, lembravam letras. Usava botas de cano longo, tipo coturno do exército. Na mesma hora veio a cabeça a imagem de Lisbeth Salander, uma personagem da trilogia Millennium, escrita por um sueco chamado Stieg Larsson, que eu tinha acabado de ler. Lisbeth era uma investigadora, hacker, e punk, com memória fotográfica e sérios problemas de relacionamento social, que tinha o mesmo gosto por figurinos, que Paola, minha paciente da fotografia. A diferença era que Lisbeth, apesar de ter 26 anos, era muito franzina e aparentemente frágil e costumeiramente a confundiam com uma adolescente, já Paola, pela foto, aparentava ser mais velha do que seus dezoito anos recém completados. Os problemas de convivência social de Paola eram mais brandos do que os de Lisbeth, ainda assim eram graves. Paola não tinha botado fogo no pai, Lisbeth Salander sim. Todavia, Paola, não era nenhum exemplo de amistosidade. Segundo meu relatório ela apresentava dificuldade de relacionamento interpessoal, atitudes consideradas antissociais e se envolveu em alguns episódios de agressão. Parece que não tinha contato com drogas ilícitas, porém, foi encontrada algumas vezes alcoolizada. Tinha sido expulsa dos últimos três colégios que estudara e seu melhor amigo, o único com quem ela mantinha diálogos amigáveis, morreu a pouco mais de um mês, depois disso, seus pais resolveram colocá-la sob tratamento psicológico, orientados pelo coordenador pedagógico do último colégio que ela foi expulsa. Então, eu fui indicado. Na verdade, Paola é filha de uma grande amiga de minha ex-mulher. Ela, minha ex, ligou dizendo que tinha me indicado. Agradeci. Eu e minha ex temos uma boa relação, conversamos amigavelmente sem nunca nos ofendermos, coisa de novela do Manoel Carlos, muito civilizado mesmo.

Finalmente bateram na porta. Olhei o relógio em forma de cérebro grudado na parede, 16h27min, ela estava quase meia hora atrasada. Grito, de dentro da sala, que pode entrar. Ela entra. Seus cabelos estavam espetados como na foto, todos os piercings estavam lá, sua roupa era preta e estava maquiada de forma grotesca. Ela ficou de pé voltada para a estante de livros, que decorava minha sala, sem olhar para mim. Eu estava sentado em minha cadeira por trás do birô, pedi que ela sentasse na cadeira em frente ou deitasse no divâ, ela que escolheria. Fez que não me ouviu, e continuou examinando meus livros. Levantei e me aproximei dela. Fiquei ao seu lado. Apesar de seu horrível visual, ela cheirava bem, muito bem, o aroma de seu perfume era muito bom. Imaginei que pessoas desse tipo de tribo não fossem adeptas ao banho. Ela, com certeza, estava banhada. Mostrei-lhe o divã, ela desviou dele e sentou na poltrona em frente a minha mesa. Não olhou em meus olhos nenhuma vez. Baixava o olhar toda vez que nossos olhos se cruzavam. Fui para minha cadeira.

_Quer conversar Paola? Perguntei.

Ela levantou seus olhos azuis, e pude ver a maquiagem verde escuro que ela tinha sob eles. Seu olhar era indiferente, quase cínico. Falou.

_Jung era nazista e Freud tarado. Olhou bem nos meus olhos e emendou sem pestanejar, de forma sarcástica.

_Você se enquadra em qual perfil?

Não contive um sorriso. E respondi.

_Em nenhum dos dois, e lembre-se, é você que está fazendo terapia e não eu. Quem faz as perguntas aqui sou eu.

Ela fechou a cara, baixou a vista e ficou brincando com uma miniatura de Freud em bronze, que servia de peso de papel, que eu tinha em cima da mesa. Perguntei:

_Por que disse isso? Sabe algo sobre Jung e Freud?

_ Eu sei que Jung trabalhou para Hitler, e Freud acha que tudo está relacionado ao sexo. Velho tarado!

_Até que você sabe de muitas coisas pra quem foi expulsa de três colégios.

_Eu ter sido expulsa não significa que sou burra. Falou com arrogância.

_De certa forma faz sim, você esta perdendo a chance de estudar e crescer como pessoa, ter relacionamentos com outros jovens, fazer amigos, essas coisas que todo adolescente faz. Respondi. Ela sorriu a socapa, escondendo a boca com as mãos, e não disse nada.

_Tá rindo de mim é? Perguntei fazendo cara de sério. Ela me encarou de novo, fez uma irritante expressão blasé, então disse:

_Esse seu papo de terapeuta é muito chato, tão chato quanto à conversa de meus pais, quando eles se dão o trabalho de falar comigo. Aproveitei a ocasião e entrei no assunto que eu queria.

_Como são seus pais Paola? Diga para mim sua impressão sobre eles.

Ela levou muito tempo para responder, ficou uns bons minutos pensando, até que disse.

_Meu pai é um palhaço, minha mãe uma piada, não sei como eles se separaram, já que palhaço e piada sempre estão juntos. Falou com certa ira na voz. Passou a mão pelos cabelos espetados e apertou o piercing do nariz. Ela estava curvada na poltrona, com uma postura bem infantil, seu rosto estava quase encostado na mesa, enquanto brincava com a pequena escultura do “velho tarado”. Transparecia fragilidade e desamparo. Ser um estorvo não era natural para ela. Ela parecia uma paródia forçada de rebeldia. Por trás daquela fantasia de rebelde e petulante, existia uma menina doce, educada, inteligente e bonita. Perguntei:

_Por que você se veste assim? Com essas roupas e essa maquiagem?

_Não gosta? Ela perguntou.

_Não, não gosto.

Ela sorriu e disse:

_Sou gótica. Falou mostrando certo orgulho.

_Ah sim. É como se fosse Dark, não é isso?

_É mais ou menos isso. Ela respondeu. Lembrei-me da minha infância. Quando eu era criança eu tinha um amigo, chamado Sávio, que era Dark. Antes de conhecê-lo um pouco melhor, eu tinha medo dele, ele devia ter uns quinze anos eu tinha onze ou doze, não lembro muito bem. Ele tinha o cabelo cortado com topete, como a maioria dos meninos daquela época, inclusive eu, nos anos 1980. Era bem curto atrás e um grande topete na frente, só que o dele era diferente, o seu topete caia sobre o seu rosto em cachos que cobriam seus olhos, e ele tinha uma problema no olho, hoje eu sei que era Ptose Palpebral, naquela época eu não sabia, e aquele olho caído que ele tinha me dava calafrios. O cabelo dele era no estilo do vocalista da banda The Cure, Robert Smith. Ele era um cara muito inteligente e bem esquisito.

_Você começou a se vestir assim depois da separação dos seus pais?

_Não, foi antes, bem antes, eles levaram quase dois anos para se separar definitivamente, mas, foi durante o período das brigas que eles tinham. Pra falar a verdade, foi até melhor a separação, só assim fiquei livre daquelas brigas patéticas. Nessa época eu conheci o Lincoln, era ele meu mentor intelectual, ele que me ensinou a ser gótica.

_Sei, ele era seu namorado?

_O Lincoln?

_Sim, ele mesmo.

_Não, claro que não. Impossível.

_Por que impossível? Aqui na sua ficha diz que vocês eram namorados.

_Você tem uma ficha sobre mim?

_Na verdade um relatório.

_Pois ponha no seu relatório que ele não era meu namorado. Lincoln era estranho, não tinha relacionamentos amorosos.

_Ele era gay?

_Acho que não, apesar de sua androginia, nunca soube de nada dele com algum menino. Mas também nunca teve nada com nenhuma menina, disso tenho certeza. Ele era, creio eu, assexuado. Ele era um cara muito sensível. E todas as suas poesias falavam de amor.

_Ele era poeta?

_Sim, um excelente poeta. Muito sombrio, obscuro, sensual e acima de tudo, obsceno, muito obsceno. Seus poemas falavam de morte e solidão, suicídios, amores não correspondidos e orgias. Seu maior ídolo era Álvares de Azevedo.

_Sei.

_Conhece os livros dele, de Álvares de Azevedo?

_Lembro da época do colégio, quando estudei literatura brasileira, nunca li nada dele, li um livro do Rubem Fonseca que o nome do livro era tirado de um poema de Álvares de Azevedo, não lembro o nome agora

_E do meio do mundo prostituto só amores guardei do meu charuto

_É isso mesmo, o nome é esse.

_ É esse sim, eu tenho o poema escrito e também li este livro do Rubem Fonseca. Porém eu gosto mesmo é de Macário.

_Macário, já ouvi falar.

_Sabe do que se trata o livro?

_Sinceramente, não faço a mínima idéia.

_Macário é um estudante que conhece o diabo, e ele, o satã, leva Macário para uma cidade cheia de prostitutas e estudantes, onde a vida é só devassidão.

_Que meigo hein. Brinquei. E você gosta disso, desse tipo de leitura?

_Não só disso, gosto de literatura, leio o que cair em minhas mãos, mas, pra mim e para Lincoln, Álvares de Azevedo era o cara.

_Sei, sei. O Lincoln morreu como?

_Consulte o seu relatório.

_No meu relatório não diz a causa da morte.

_Não. Incompetência de quem redigiu isso aí. Lincoln morreu de um aneurisma. Ele já sabia que morreria de uma hora para outra, mas como não sabia quando, ele torcia para ser este ano, ele fez 21 anos três dias antes de morrer. Morreu com a mesma idade que o Álvares, era tudo que ele queria. Falou isso e ficou muito tempo calada, com o olhar perdido, seus olhos estavam úmidos. Fiquei ali observando aquela menina e pensando em seu estranho amigo. Um cara que queria morrer aos 21 anos não pode ser uma pessoa normal, apesar dele não ter escolha, poderia, ao menos, querer viver mais. Quebrei o silêncio com uma tosse, e comecei arrumar minhas coisas, à hora dela estava se encerrando.

_Muito bem Paola, por hoje está bom, queria dizer que pra uma menina que foi descrita como antissocial e difícil de conviver, você até que se portou muito bem.

_Você, como terapeuta, deveria saber que não se deve julgar uma pessoa pelo que falam dela e sim pelo que ela realmente é. Você não acha?

_Acho sim, você tem toda razão. Ela ficou me fitando por um bom tempo, deixando-me sem jeito, e disse:

_Você não se lembra de mim né tio Raul? Tomei um susto, aquela pergunta me pegou de surpresa. Tio Raul, por que tio Raul. Olhei pra ela com cara de espanto e falei:

_Eu, por acaso, já lhe conhecia? Ela balançou a cabeça afirmativamente.

_De onde?

_Você e a tia Suzana foram ao meu aniversário de dez anos lá em casa. Puxei pela memória, tentando lembrar, depois de muito custo lembrei-me de uma menina loirinha, com cabelos longos e cacheados, assoprando velas que estavam em cima de um bolo. Isso fazia oito anos. Olhei de novo para Paola e disse:

_Desculpe-me Paola, não lembrava mesmo, além do mais você está bastante diferente. Você era loirinha e tinha cabelos cacheados.

_É para o senhor ver como as coisas mudam. O senhor tinha mais cabelos naquela época e era mais magro também, no entanto, continua bonitão. Fiquei muito sem graça e acho que minhas faces coraram, ela percebeu meu embaraço.

_Calma doutor Raul, isso não foi uma cantada não. Ri sem graça e falei que estava tudo bem. Despedimo-nos, e ficamos de nos encontrar na próxima terça-feira, sem falta.

Encontrei com Paola por quase dois anos, durante muitas terças-feiras. E hoje seria nosso último encontro. Ela se mostrou, durante todo esse período, ser uma menina inteligente, culta e interessante, muito interessante mesmo. O problema dela era o clássico conceito dos filhos de pais atarefados, distantes e com sentimento de culpa, que tentam compensar a ausência, presenteando os filhos com coisas caras e fúteis. E nunca tinham tempo para saberem o que afligiam os filhos. A separação foi o ponto crucial para o ato de rebeldia de Paola. Paola só queria chamar a atenção deles. E, apesar de minha inanidade psicanalítica e meu relambório intelectual, palavras dela mesmo, depois de poucas sessões ela já não se maquiava tão pesadamente, deixou de espetar os cabelos e o principal, voltou a estudar e passou no vestibular para, imaginem vocês, Psicologia. Senti-me muito envaidecido. Sua relação com os pais melhorou, pouco, mas melhorou. Ela ainda usa, predominantemente, roupas negras, ainda lê escritores esquisitos, e gosta de visitar cemitérios. Outro dia mesmo a acompanhei a um sarau que se realizou na Colina da Saudade, cemitério aqui da cidade. Estavam por lá uma dúzia de jovens góticos, alguns punks e pessoas normais, assim como eu. Eles recitaram Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Baudelaire, Byron entre outros poetas malditos. Ouvimos música gótica e nos chapamos de vinho barato. Devo confessar que gostei, fazia tempo que não me divertia tanto. Sinceramente estou muito envolvido por Paola. Estou flagrantemente apaixonado por minha paciente gótica. Entretanto, sei que é um amor meio impossível, platônico, inatingível. Muito adequado para quem passou tanto tempo falando de escritores ultrarromânticos, sobre o mal do século, e amores impossíveis. Pouco comum, admito, entretanto, absolutamente verossímil. Deve ser a crise dos quase 40 anos. Nada mais Freudiano que um terapeuta que se apaixona por sua jovem e problemática paciente. Estou, sem dúvida, precisando de análise. Será que Freud explica?