Sobre o leite derramado
Acordo sempre assustado e empapado de suor. Muitas vezes não sei onde estou, só depois de muito vasculhar todas as portas e janelas de minha senil e incapaz memória, eu me lembro da triste sina que vivo. As recordações, boas e ruins, me visitam como sonhos, e transito entre a realidade e a fantasia, tudo culpa dos fortes medicamentos que tomo. Por conta disso troco nomes e confundo fisionomias. Quem, da minha época, me visse assim, decrépito e babão, não me reconheceria, eu mesmo não me reconheço ao me olhar no espelho. Sonho muito com futebol, sonho jogando bola e, sobretudo, sonho com copas do mundo. Sou fanático por futebol e a copa do mundo é o auge desse esporte. Um dia desses, durante o sono, a seleção de 82 foi campeã em cima da Alemanha. O jogo foi 4 a 1, dois gols do Zico, um do Sócrates e um do Éder Aleixo, numa cobrança de falta magistral, com uma desviada, decisiva, do baixinho, e a bola foi morrer no fundo das redes, antes, topando, caprichosamente, na trave..., não, não, peraí, o Romário não jogava na seleção de 82, essa desviada da bola ele deu na copa de 94 numa falta batida pelo Branco, num jogo contra a Holanda, mas sonho não é lógico, é atemporal e tudo pode acontecer, e eu ando mesmo atrapalhando tudo nesses últimos dias, e pra falar a verdade nunca sei quando estou dormindo e quando estou desperto, acho que o futuro é incerto e o fim está próximo, quem disse isso foi Jim Morrison, não fui eu, enfim, só sei que o Brasil foi campeão do mundo em 1982 no meu sonho. A primeira vez que chorei sem nenhuma vergonha ou pudor, foi no fatídico dia que a seleção canarinho perdeu pra Itália. Dia 05 de julho de 1982, Brasil 2 X Itália 3, o dia que o mundo quase acabou, ao menos, pra mim. Claro que já tinha chorado antes, entretanto, era por alguma doença ou por ter apanhado de minha mãe, ou do meu pai, ou do meu irmão mais velho, ou por pura birra. No entanto, a dor que senti naquele dia foi muito maior do que qualquer surra poderia proporcionar, doeu demais. Eu chorava copiosamente deitado na rede da varanda, e era consolado por meu pai, não houve consolo que desse certo, nada adiantou, a triste lembrança daquele dia tatuou-se em mim. Foi uma tristeza definitiva. Aquele time, que só tinha craque, talvez só o Serginho destoasse um pouco dos outros, não ter sido campeão foi uma tremenda ironia do destino. Em minha opinião quem perdeu, naquele dia, foi o futebol. Foi o melhor time que já vi jogando bola, não ganhou nada, tudo bem, contudo, é minha seleção favorita. Depois de certa idade comecei a perceber meu envelhecimento através das copas do mundo. Em 2006, logo após a eliminação do Brasil para nossa carrasca França, fiquei um bom tempo deitado olhando para o teto e ruminando quantos anos eu teria na próxima copa, eu teria 37 anos, achei que o tempo estava acelerando muito rápido, comecei, daquele dia em diante, a me preocupar com a idade, com minha velhice. Computo, desde meu nascimento até hoje, dezessete copas do mundo, façam as contas aí. A enfermeira acaba de entrar no quarto, e vem segurando uma enorme seringa, uso todas as minhas forças e argumentos, e não consigo fazer com que ela desista de espetar aquilo em mim, quatro minutos adiante, durmo... . Morfina. Tô eu e minha mãe, sentados um de frente para o outro, e ela fala que não se pode ser morno, com relação à crença em Deus, ou se é quente, ou frio, “tá na bíblia meu filho, tá na bíblia”... . Agora eu e meu pai estamos assistindo uma partida de futebol, olhamos fixamente a tela e não falamos nada, nem nos olhamos, viro pra ele e pergunto “pai, tem quanto tempo que o senhor não visita o vô?” ele não responde... . Tô agora na maternidade, minha filha nasceu, a enfermeira veio me mostrar, ela é toda cor de rosa, e está de olhos fechados, acarinho sua cabeça, a enfermeira diz que tem que ir e vai saindo levando ela embora, falo: “tchau Maria”, ela se vira me procurando, procurando de onde vem a voz, abre os olhos e me vê, foi à segunda vez que chorei sem nenhuma vergonha ou pudor, só que, ao contrário da primeira, essa foi de alegria, meu Deus, que dia foi aquele... . Tô de frente para um cara vestido de jaleco branco e gravata preta com listas vermelhas, não o reconheço, ele está sentado por traz de uma pomposa mesa de vidro, eu estou do outro lado, ele fala, mas eu não compreendo nada, apenas vejo seus lábios mexerem, de uma hora pra outra eu escuto “você tá com câncer, metástase, não tem jeito, sem cura”... . Acordo molhado, sujo e transpirando abundantemente. Estou nessa luta há quase cinco anos. Tudo começou com dores de barriga e diarréias constantes, com o tempo foi piorando, as cólicas que eu sentia eram insuportáveis, me contorcia de dor sentado no vaso sanitário. Com muito esforço saiam jatos de fezes pretas e sanguinolentas e de odor pútrido. Abscessos surgiram em meu orifício anal, abscessos dolorosos e humilhantes. Desconfiaram, na época das diarréias, da Síndrome do Intestino Irritável, não era. Durante as fortes cólicas e os furúnculos, apostaram na Doença de Crohn, outro erro. Na comemoração das minhas 65 primaveras, passei muito mal, desmaiei e fui internado. Diagnóstico: Câncer de Intestino. Causas: Alimentação, álcool, tabagismo, outras drogas, tantas outras coisas.. Cheguei à conclusão que viver da câncer. Passei por incontáveis exames, no começo, quando ainda procuravam descobrir o que eu tinha, enfiaram tanto cano e tanta mangueira dentro de mim, pelo meu vaso traseiro, que vocês nem queiram saber, cheguei a desconfiar que depois daqueles tira e põe, enfia e desenfia, que não acabava mais, minha masculinidade fosse pro beleléu. Graças a Deus não foi, só mesmo minha dignidade de macho é que foi abalada. Nitidamente percebo que estou chegando ao fim, e estou absolutamente tranquilo, apesar da minha pouca quentura, da minha mornura, em crê na existência do Salvador, não tenho nenhum medo. Aguardo com a serenidade dos absolvidos, ou melhor, dos condenados. Acendem a luz do meu quarto sem aviso e a claridade me assusta, afasto meu braço num ato reflexo e derrubo o copo que está em cima do criado mudo. Já estou em casa, e vejo o leite derramado em cima do móvel, não o livro do Chico, e sim, a concreta imagem do líquido branco escorrendo e percorrendo seu abstrato caminho.