Anjo ou Demônio?

Anjo ou Demônio

Eduardo abriu a porta e deu uma olhada para dentro do quarto. Fechou-a com certa violência e tristeza nas faces. Segurando o trinco, encostou a cabeça na madeira dando algumas batidas com a cabeça. Ainda encostado à porta, colocou a mão esquerda espalmada sobre a lâmina do batente e suspirou profundamente. Depois de alguns segundos, levantou os braços acima da cabeça e disse: –Meu Deus, me dê uma luz, porque não sei mais o que fazer! Estou desesperado! Não vou conseguir viver assim.

Todos nós passamos por situações estranhas, mas, sempre encontramos uma resposta para as nossas dúvidas. Essa, porém, pela qual Eduardo estava passando, talvez nem Freud pudesse explicar. Ele estava atordoado com os últimos acontecimentos que invadiram sua vida. Estava casado há mais de dois anos. Adorava a esposa que era uma perfeita dama e um exemplo de perfeição. Eduardo ficava horas tentando descobrir algum defeito mais marcante em sua esposa, que pudesse indicar que ela era humana. Mas, sempre acabava chegando a conclusão que ela não era desse planeta. Quantas vezes, Eduardo havia marcado ir ao teatro ou mesmo ao cinema após o expediente e a propósito havia faltado a esses encontros. Só para sentir sua reação. Voltava para casa algumas horas mais tarde e a encontrava toda produzida à sua espera. Clara olhava para ele com um sorriso nos lábios e dizia, brandamente: “Não precisa sentir-se culpado querido. Sei que seu dia foi duro e você queria algumas horas só para você. Entendo sua preocupação, mas não estou chateada. Venha sentar-se ao meu lado, vou fazer-lhe uma massagem. Irá sentir-se melhor dentro de alguns minutos”. Clara ficava massageando os pés de Eduardo por longos minutos.

Agora Eduardo estava só! Não sabia onde encontrar, se quer, um par de meias ou mesmo combinar a camisa com a cor da calça. Dependia, totalmente, da esposa até para levantar-se no horário. Quem entrasse no apartamento, mesmo antes de ultrapassar a soleira da porta, perceberia que lá vivia um homem sozinho, sem senso de organização ou de higiene. Havia pilhas de jornal sobre a mesa da sala de jantar. Bandejas de papelão espalhadas pela pia e fogão, que se mantinha fechado desde o dia em que Clara o fechou pela última vez. No banheiro, o cesto de roupas sujas continha pilhas de camisas. Mantinham-no semi-aberto, demonstrando que Clara estava ausente. Já não tinha mais talheres limpos e dezenas de copos de papelão rolavam pelo chão da cozinha. Até o solitário que Clara usava sobre o fogão, com sua flor predileta, encontrava-se agora abandonado. Somente com as folhas secas do último jasmim, tirado de seu jardim. Tudo havia perdido o brilho nesta casa, onde tinha sido um ninho de amor, agora só o silêncio reinava além da desordem total.

Clara adorava trabalhar em seu jardim, o que fazia quase todas as manhãs. Duas tardes por semana eram reservadas para o trabalho voluntário no asilo. Ou melhor, no lar para idosos como ela enfatizava todas às vezes que era argüida pelo marido. Mas, as quintas feiras eram especiais para Clara. Quatro horas das quintas feiras eram reservadas para visitas às famílias menos favorecidas do bairro. Usava essas horas alfabetizando as mulheres analfabetas, ou melhor, as não alfabetizadas como fazia questão de dizer. Quantas vezes, Eduardo chegou em casa e encontrou Clara tomando conta de crianças que ele nunca tinha visto. Quando exigia uma explicação, Clara dizia: “Meu amor, a mãe da criança precisava trabalhar o dia, porque não tinha nada para alimentar o bebe. Não tendo com quem deixá-lo, ofereci-me para ficar com ele. São oito horas de trabalho, o dia passa rápido e a pobre terá ganho o sustento da semana. Não custa nada fazermos algum esforço para ajudarmos os necessitados. – Nessas horas, Eduardo olhava para a esposa, incrédulo e respondia-lhe: –No seu caso, meu bem, grande esforço seria ficar sem ajudar alguém.

Naquele dia, Eduardo havia extrapolado em suas tentativas de encontrar uma falha na esposa. Era uma quinta feira e ele havia chegado mais cedo do trabalho. Encontrou o apartamento impecável e sobre a mesa da sala de jantar havia um bilhete deixado por Clara. Dizia: “Amor, sei que às quintas feiras você chega em casa mais cedo. Portanto, estou deixando na geladeira a sua torta preferida, caso chegue com fome. Sobre a cama estão sua bermuda e camiseta para usá-las depois do banho. Sinto não estar em casa quando você chegar, mas preciso muito ajudar uma família que foi despejada de casa por falta de pagamento do aluguel. Assim que tudo estiver resolvido volto para casa, para seus braços, meu amor. De Clara, beijos”.

Quando Clara retornou para casa no início da noite, Eduardo estava furioso. –Clara, casei-me com você para tê-la ao meu lado quando estou em casa. Não concebo sua ausência quando volto do serviço cansado e encontro o apartamento vazio. Quero-a esperando-me como toda boa mulher deve fazer ao seu marido. Isso não é exigir muito, mesmo porque, você sabia que eu chegaria mais cedo. Fique vendo televisão ou mesmo fazendo as unhas se quer algo para fazer. Mas em hipótese alguma, saia de casa quando estou para chegar. –Querido, eu estava impaciente sabendo que três crianças pequenas estavam dormindo na rua por falta de dinheiro. Elas não têm culpa nenhuma pelo fracasso dos pais. Ou das autoridades que teimam em não ver os pobres coitados dormindo na rua, como animais.

Eduardo levantou-se de sua cadeira, foi até à porta, passou as mãos pelos cabelos, andando com passos firmes, dirigiu-se à Clara, transtornado: –Quer dizer que três garotos cheirando a sarjeta, para não dizer outra coisa, têm mais valor para você do que seu marido? Desde quando eles te sustentam ou mesmo mantêm seus caprichos? Sou eu que dou duro o dia todo para mantê-la nesse luxo todo. Olhe para suas mãos! São delicadas e cobertas de ouro e brilhantes. Mãos que nunca tiveram qualquer pressão de um dia de trabalho. Mãos que nunca tiveram que esperar por uma data especial para receber presentes. Suas mãos são assim porque eu as quero desse jeito. Não me importo de trabalhar o dia todo, para te dar o melhor, mas, quero toda sua atenção. Não quero dividi-la com ninguém, principalmente com um bando de rejeitados pela sociedade, que vive às margens da vida. Cada um colhe o que plantou. Estão nessa situação porque não souberam usufruir as vantagens que a vida lhes ofereceu. Portanto, não a quero envolvida com esse tipo de gente. Espero não ter que repetir tudo isso, porque posso ficar muito irritado com você..

Clara olhou para o marido com expressão de decepção e surpresa misturada a dor. Seus olhos estavam marejados de lágrimas. Levantou-se lentamente da cadeira, parou em frente ao marido. Olhando para ele levantou a mão direita como se fosse falar alguma coisa, mas, desistiu. Entrou no quarto e trancou a porta. Eduardo podia ouvir Clara soluçando. Ele mantinha um sorriso nos lábios e seus olhos brilhavam! Eduardo havia encontrado o ponto fraco da esposa. Por vinte e seis meses de seu casamento, tentou de tudo, mas, nunca tinha conseguido descobrir o “Calcanhar de Aquiles” de Clara. Sentia-se vitorioso nesse momento. Clara era uma espécie de deusa para ele. Algo quase sagrado, intocável, inatingível! Palavra nenhuma poderia atingi-la ou modificá-la. Ela era superior a tudo como se vivesse em outra dimensão da vida. Com isso, Eduardo sentia-se pequeno em relação à grandiosidade de compreensão e amor oferecidos por Clara. Mas, ele queria algo mais, como uma mulher humana com quem pudesse quebrar a rotina de sua vida de casado. Queria sentir na pele o que os outros colegas diziam quando chegavam ao trabalho de cabeça baixa e de mau humor. Queria ter a chance de brigar com Clara e depois de algum tempo fazer as pazes. Porque seus colegas diziam que era muito bom quando isso acontecia. Era como um novo começo. Uma sensação de poder, de comandar os sentimentos da esposa. Ele precisava sentir isso na pele. Agora, acabava de passar pelo crivo do poder, que tanto havia almejado.

Sentado em sua cadeira predileta, Eduardo já imaginava o que poderia comprar para a esposa, que pudesse fazê-la feliz novamente. Compraria uma jóia ou quem sabe, trocaria seu carro por um zero. Depois das devidas desculpas ele a levaria ao teatro, jantariam num restaurante de primeira linha. Para fechar o dia no mais alto estilo, a levaria ao melhor hotel da cidade para passar a noite. Seria uma nova lua de mel. Eduardo sonhava sem perceber o que a esposa tramava.

Tão empolgado estava que adormeceu sonhando que tinha Clara em seus braços. Juntos dançavam uma valsa e, como estava divina! Parecia que flutuava no ar. Depois de algumas horas de sono, Eduardo acordou chamando pela esposa. Correu até a porta do quarto, girando o trinco percebeu que a porta continuava trancada. Após bater algumas vezes à porta, pensou: “Ela quer ficar sozinha essa noite, não vou atrapalhar seu desejo. Amanhã quando se levantar terá a mais grata surpresa de sua vida. Então ela virá correndo para meus braços e saberá quanto a amo!”

Quando Eduardo olhou o relógio de pulso, pela manhã, percebeu que o dia já se fazia alto. Ele havia perdido a hora. Correu até a porta do quarto e deu algumas batidinhas. Disse: “Querida, acorde! Perdi a hora e você ainda não preparou o café da manhã. Já estou atrasado, tenho que tomá-lo no máximo em dez minutos. Por favor, meu bem abra a porta, tenho que pegar minhas roupas. –Eduardo já estava impaciente com a esposa quando resolveu pegar a cópia das chaves e abrir a porta. O quarto estava na penumbra. O silêncio era total. A cama estava feita e sobre a colcha um envelope. Eduardo o tomou com ansiedade, correu para a sala. Abriu a janela. A luz inundou o ambiente, mandando a escuridão para os cantinhos. Abriu o envelope com as mãos trêmulas. Antes de desdobrar o papel sentou-se na cadeira como esperasse pelo pior. Estava trêmulo e ansioso”.

Estava escrito: –Eduardo, passei vinte e seis meses de minha vida tentando fazê-lo feliz. Nunca entendi porque você sempre quis mudar meu comportamento. Entrei em sua vida com o único objetivo de amá-lo, de protegê-lo, de fazê-lo feliz. Nunca, Eduardo, seus presentes significaram muito para mim. Eu os aceitava, pelo simples fato de que com esse gesto eu lhe fazia feliz. Quanto às minhas mãos não terem passado por pressões, engano seu. O meu maior desafio foi te guiar pela vida e o fiz com muito amor. Minhas mãos não foram criadas para viver da pressão do trabalho, mas sim, para limpar as lágrimas de rostos inocentes. Foram criadas para acalentar criancinhas, cujas mães tinham que ganhar o sustento do dia. Foram criadas para arrancar a ignorância das pessoas que não tiveram oportunidades na vida. Foram criadas para serem elevadas até aos céus, quando você mais precisava da ajuda divina. Foram criadas para espalhar a bondade e o amor. Hoje, eu o deixo certa de que minha missão em sua vida foi cumprida. O espaço está livre Eduardo, mas, quero te dar um conselho. Quando almejar uma outra mulher, pense bem no que vai pedir para não incorrer no mesmo erro. Porque em vez de um anjo você poderá receber o diabo.

Com amor, Clara.

mendo
Enviado por mendo em 17/07/2005
Código do texto: T35106