A JUSTIÇA SERÁ FEITA
O rapaz está sentado numa cadeira estreita encostada à parede e em seu colo,uma caixa branca de papelão que ele segura como se a abraçasse, aninhando-a junto ao corpo, meio inclinado sobre ela. Seu olhar parece fixar alguma coisa acima das pessoas que ali se encontram. Um leve estremecimento faz ele se remexer , mas logo volta à passividade inicial.
Estamos no sexto andar de um prédio no centro de uma pequena cidade. Lá embaixo há um movimento anormal para aquele horário. São seis horas da tarde que já virou noite. É inverno e um vento frio faz as pessoas encolherem-se e se aproximarem mais nos pequenos grupos daquela aglomeração totalmente inusitada. Um burburinho incessante e crescente denota grande agitação. Carros circulam contornando a praça, e algum grito ou ruído de assobio corta os ares de vez em quando.
Em sua casa, Teresa não consegue parar. Uma angústia crescente faz com que caminhe de uma peça a outra, tapando os ouvidos de vez em quando, mas sem sucesso. O ruído humano a uma certa distância, lembra a ela algum filme onde multidões nas praças produzem sons ferozes e ameaçadores. Ela sabe porém que tudo é real , absurdamente real e trágico. Sua cabeça está fervilhando e não consegue se fixar em nada. Imagens recortadas surgem em profusão. A vizinha falando sem parar, junto ao muro, tu sabes, tu sabes, sabes, sim, a professora, sim, morta, os rapazes, sim, fugiram , a faca...
Um homem se aproxima e tenta pegar a caixa branca. O rapaz a aperta mais contra o corpo com olhar desesperado. Mas o homem segura firme e arranca-a de seus braços, dizendo que depois ele a recebe, lá onde ele vai ficar. Uma profunda tristeza surge naquele rosto jovem de menino com seus dezoito anos. O policial então pede que ele estenda as mãos e coloca as algemas. Um pequeno estalo e as mãos demoram uns instantes até descer devagar e ir ficar sobre as pernas. Seu tronco se contorce erguendo um pouco os ombros, como para compensar a recente imobilidade das mãos. Mas não se desliga da caixa, segue-a com os olhos fixos, enquanto ela vai em direção a um balcão onde é depositada. E fica a olhar como quem procura o norte numa bússola, estando totalmente perdido.
Lá embaixo há uma multidão formada por pessoas de proveniências variadas. Operários que saíram mais cedo do trabalho sob condição de fazer número.Alunos que saíram mais cedo da escola para participarem do protesto. De voluntários, gente ávida por novidades, aquelas que a qualquer desgraça são as primeiras a comparecer e também as justiceiras que sempre querem ver algum culpado levar o seu castigo. Teresa imagina estes rostos em caretas horrendas e punhos fechados e ameaçadores. Pensa também que são essas pessoas que ajudam a tornar o mundo um lugar mais detestável. Um respeitável senhor é visto dando um chute na porta de um carro. Atitudes absurdas e inesperadas nos cidadãos de bem. Medo? E afinal, por que estão todos ali reunidos?
O filho de Teresa chega em casa e diz que as professoras os mandaram para a praça. Mas diz que muita gente foi embora, inclusive ele. Ela suspira aliviada. Seu filho ali lhe devolve uma certa tranquilidade. Logo tudo estará terminado. E se fosse ele, o seu filho? Não, não queria pensar , mas era difícil assimilar este avesso de vida, este turbilhão que de repente mostrava a face feia daquela cidadezinha onde tudo parecia estar em seu devido lugar. Justiça seria feita. Quem matou tem que pagar. E as jóias que a mulher não queria entregar pros rapazes, ela pensa, e se fosse eu? é claro que eu entregaria! Por que a outra lutou pelas jóias? Tal raciocínio atordoa demais mas ela quer entender. Não havia armas, pegaram uma faca da cozinha , ela lutou, disseram que a faca entrou apenas um centímetro, devia estar com os braços erguidos, dando espaço entre as costelas, que pena, um centímetro fatal, na altura do coração.. Teresa pensa nas jóias que não tem, e se tivesse, daria a vida por elas? Certamente que não. Poderia estar viva, a mulher, livres os rapazes, pelo menos não seriam assassinos...Teresa sente raiva da mulher. Um centímetro, ferimento acidental , por que maldita não entregou as jóias? Eram uns rapazes em sua primeira e única tentativa de assalto, fugiram apavorados quando ela caiu. E ela morreu por falta de socorro. Teresa vai em direção à cozinha, Passa a mão na testa como para afastar os maus pensamentos, Finalmente o ruído começa a diminuir. E ela mergulha fundo nos conteúdos das panelas.
As ruas começam a se esvaziar, dizem que a polícia retirou o rapaz disfarçado, usando um boné e roupas de policial.
A sala do sexto andar agora está vazia e silenciosa. De uma porta lateral, surge uma senhora com balde e vassoura, Anda vagarosamente sem prestar atenção aos vestígios da recente manobra. Inicia com movimentos mecânicos a limpeza, varrendo compenetrada o piso onde restaram alguns vestígios da recente estranha reunião. Algumas xícaras com restos de café, tocos de cigarros nos cinzeiros, algunmas folhas de papel sobre uma mesa, uma canteta caída ao chão.
E sobre o balcão, impávida, a caixa branca de papelão. O que continha? Um par de sapatos. Um par de sapatos que a mãe entregara ao filho, na hora em que saiu da delegacia em direção ao local mais seguro. É bem provável que ele nunca mais a receba. E quando sair da prisão, se sair, já terá aprendido a matar de verdade...