O caso mistral
Estávamos em 1968, o laboratório de solos do Centro de Pesquisa do Cacau funcionava, de forma provisória, na sede da fazenda Corumbá, no final da Estrada dos Pintos, no Km 7 da Rodovia Ilhéus/Itabuna. Tínhamos uma estrutura de madeira, o laboratório propriamente dito, e a cozinha da sede da fazenda, local de guarda dos produtos químicos e vidrarias.
Aí guardávamos uma solução de ácido clorídrico a 10%, que servia para lavar o papel de filtro usado na separação da solução do solo após ataque com ácido sulfúrico, para o cálculo das relações moleculares Ki e Kr em solos, para acompanhar o seu processo de intemperismo.
Esta solução estava acondicionada em um frasco plástico de Mistral, desodorante muito usado na época. Ele estava sempre em uma prateleira pregada na parede, junto de outros frascos de solução. Só que não havia identificação sobre o seu conteúdo - falha nossa -, embora todos os que trabalhavam no laboratório tinham conhecimento do que nele continha.
Certo dia recebemos a visita de um dos rapazes que faziam a vigilância na área da Fazenda Corumbá. Ele reclamava que um frasco com ácido havia caído sobre sua roupa, destruindo-a completamente, principalmente a camisa Volta ao Mundo, novinha, novinha - novidade à época -, trazida de São Paulo pelo irmão que acabara de chegar, e que era para ser usada somente em ocasiões especiais. Os sapatos Vulcabrás e as meias de Nylon da marca Lupo também foram afetados, dizia ele. Na calça, de Tergal da Rhodia e vinco permanente, abriu-se um buraco danado, dava para passar uma mão. Até as abotoaduras douradas, que ornavam os punhos de sua camisa, ficaram pretas pela ação do ácido. Seu pente da marca Flamengo, que trazia no bolso da camisa, derretera. Naquele dia, um domingo, ele havia participado de um casamento e fora direto da igreja para o serviço. Estava realmente com vestimenta de festa.
Preocupado, procurei saber que ácido havia feito aquele estrago todo. Ao olhar para a direção apontada pelo vigilante, deduzi o que acontecera; ele havia usado o conteúdo do frasco de Mistral, pensando ser desodorante. Ao abaixar os braços, o ácido que havia sido esparzido na parte inferior da junção entre o seu braço e o seu ombro, conhecido como axila ou sovaco, derreteu a camisa, feita de fio sintético.
Descoberto, o vigilante contou o que realmente acontecera. Suado, pois tinha andado da pista até a sede da Fazenda Corumbá, um bom pedaço de caminho, sol a pino, camisa pregada na pele, o cheiro que seu corpo exalava não era muito agradável. Então, ao ver o frasco de Mistral, resolveu borrifar todo o seu corpo. Abriu a camisa, aplicou o suposto desodorante em si, que ao contato com a pele causou irritação. A dor foi menor que o medo e o vigilante deixou cair o frasco de Mistral no chão, quebrando a tampa, feita de um plástico mais duro e quebradiço. Foi aí que a solução de ácido se espalhou pelas calças, meias e pelos sapatos.
Aconselhei ao vigilante que, doravante, não chegasse perto dos frascos dispostos naquela prateleira, mesmo que seu rótulo indicasse ser coisa diferente de produtos químicos. Também ficamos mais atentos quanto à rotulação daqueles frascos. Informei, também, que uma solução de ácido clorídrico a 10% não era tão prejudicial assim, deste que não ingerido, o estrago seria apenas o que ele experimentou; irritação na pele e desgaste em materiais sintéticos.
O vigilante saiu aliviado, mas ainda um pouco desconfiado. Disse-me que só entraria naquela sala, de agora em diante, em casos de extrema necessidade, e que avisaria aos seus outros colegas da recomendação recebida.