Moinhos de vento modernos

Certa manhã, início de feriadão, acordei cedo e fui apreciar a paisagem que se abria em frente da pousada em que me hospedara na noite anterior. Era um chalé de dois pavimentos, cozinha, banheiro e uma sala no pavimento inferior. No superior, dois quartos, um de casal e outro para solteiro, com duas camas.

Do quarto de casal saía uma varanda, o cenário à frente era comum a qualquer ambiente de praia com dunas e coqueiros, exceto pelas grandes estruturas de metal fincadas na fina e amarelada areia daquela bela e sinuosa duna. Ao final de cada uma dessas estruturas de metal, que se afunilavam em direção ao céu, havia hélices de três pás, girando perpendicularmente ao chão e a uma inclinação de 15º em relação ao seu eixo.

Era magnífico ficar olhando aquelas estruturas pintadas de branco, com suas cabeças a girarem de um lado para outro, ao sabor dos ventos rasgando o céu azul e sem nuvens daquela praia quase deserta.

Deslumbrado, sentei-me na cadeira ali posta e passei a admirar aquelas imponentes estruturas que dançavam uma coreografia jamais desenhada, incorporando, a cada instante, novos movimentos cadenciados e simétricos. Para alguns, aquilo parecia monótono, para mim representava arte elaborada com esmero e técnica apurada, significava beleza e harmonia, capaz de expressar a subjetividade humana.

Não conseguia desligar-me daquele cenário, no primeiro dia fiquei ali por várias horas, como hipnotizado, a percorrer com os olhos, uma a uma, todas as dez torres instaladas naquele local. Procurava, em vão, encontrar alguma coisa diferente entre elas, se alguma hélice girava em sentido contrário, se alguma delas, em determinado momento, parava. Se alguém ou algum animal passava, a quebrar a monotonia no rés do chão daquele ambiente. Nada, só se moviam as hélices dos moinhos de vento modernos. O que separava a cadeira na qual estava sentado e aquela imensidão de areia e metal trabalhado era o rio Jaguaribe e nada mais. Por isso, minha visão privilegiada daquela paisagem.

Lá para o meio-dia, fui chamado para vestir o short e seguir para a praia, onde iríamos tomar banho e depois almoçar. Ficamos por lá até às 18 horas e já escurecendo, retornamos à pousada. Da varanda, em direção ao outro lado do rio, já não se via quase nada, não havia lua, as torres estavam às escuras, só se avistavam vultos das estruturas de metal, emprestando ao ambiente ar fantasmagórico.

Na manhã seguinte acordei um pouco mais cedo, não chovia, o céu se mostrava intensamente azul, céu de brigadeiro, apenas alguns tufos de nuvens vagavam preguiçosamente no firmamento, o calor era intenso já àquela hora da manhã. Desci para fazer o desjejum, que constou de um copo de suco de laranja, uma torrada com geléia de goiaba, uma fatia de ricota e café puro, sem açúcar.

Ao retornar para a varanda do chalé, sentei-me na cadeira de vime, colocada displicentemente entre duas palmeiras plantadas em dois grandes jarros de cimento, e pus-me a espiar o outro lado do rio, o lado das torres de metal, dos moinhos de vento modernos. Eles estavam ali, todos eles funcionando perfeitamente, apesar do pouco vento que soprava, tornando mais calmo ainda o ambiente futurista que eu tinha pela frente. Tudo aquilo manifestava energia: o sol, as ondas do mar, a correnteza do rio, o vento e eu comodamente sentado, inerte, sem força para reagir, olhando fixamente para aquelas estruturas de metal, para aqueles moinhos de vento modernos, exornados apenas pela areia amarelada da praia, pelas espumas brancas formadas durante a quebra das ondas, e pelo sereno descer das águas do rio Jaguaribe rumo ao mar. Tudo aquilo parecia sugar minhas energias, como se o conjunto precisasse cada vez mais de fontes energéticas para sobreviver. Eu continuava extasiado defronte de tudo o que minha visão alcançava.

Aos poucos, fui perdendo minhas forças, fui dessangrando, já estava há mais de dez horas olhando para aquele cenário, sem comer, sem beber, sem mesmo me levantar. O sol já tomava rumo ao seu esconderijo diário, lá para as bandas do horizonte, na direção do oeste, espargindo seu matiz espectral vermelho e laranja de forma vibrante.

A noite caía e obliterava a paisagem a minha frente, só as figuras disformes eram vistas. Uma sensação estranha começou a tomar conta de meu corpo, minha mente se tornava cada vez mais confusa. Passei a levitar, a voar em direção aos moinhos de vento modernos. Na areia amarelada da praia fui parar, meu corpo se agigantava, parte dele fincava-se na areia, outra se erguia em direção ao céu. Minhas orelhas se tornaram hélices e minha cabeça passou a girar pelo comando da direção que soprava o vento. Eu me tornara uma daquelas estruturas de metal, um moinho de vento moderno, agora éramos onze, gerando energia para a cidade de Fortim. Revigoradas, minhas energias visitavam cada casa daquela localidade, os fios da companhia energética, talqualmente o cavalo Rocinante de Don Quixote a cavalgar novas aventuras, se encarregavam disso. Eu vi uma criança esquálida no colo de sua mãe chorando com fome, vários jovens falando da desesperança que invadia suas vidas, adultos desempregados sem ter com que sustentar suas famílias, idosos sem amparo, quase moribundos, esperando apenas a morte chegar. Deparei com residências opulentas, onde reinava o desentendimento, a avareza, a cobiça e a ganância. Em algumas casas reinava a felicidade, seus inquilinos eram inteligentes e compartilhavam com o próximo sua bondade e sabedoria. Vi também miséria, drogados, crentes, descrentes, desigualdades, falta de solidariedade, toda a desgraça do mundo. O que mais me impressionou foi aquele punhado de homens e mulheres que não mais trabalhavam por conta da ajuda do bolsa família. Seus filhos, por estarem matriculados em escola pública, eram os verdadeiros mantenedores dessas famílias.

Diferentemente do principal personagem do romance do escritor espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra, Don Quixote de La Mancha, fidalgo combatente de gigantes moinhos de vento, que em sua mente desvairada representavam a injustiça social e as guerras, os moinhos de vento modernos do Fortim e de outras localidades têm a missão de levar luz para todos, de clarear as salas de aulas noturnas, de iluminar os casebres das periferias das pequenas cidades, de levar energia elétrica para movimentar pequenos negócios, hospitais que garantem vidas em povoados distantes das cidades estruturadas, de permitir que a eles cheguem notícias pelo rádio, pela televisão, disseminando o progresso, encurtando as distâncias e possibilitando a diminuição das desigualdades sociais. É uma luta inglória, mas que deve contar com a participação de todos. Novas tecnologias, principalmente as que não agridam o meio ambiente, serão sempre bem-vindas.

Ao longe eu ouvi uma voz: venha dormir na cama, Gil, já é muito tarde, amanhã teremos de deixar a pousada e voltar para Fortaleza. Você vai dirigir bastante e não pode acordar cansado. Levantei-me, ditoso e cheio de esperança, e fui dormir.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 17/02/2012
Reeditado em 24/03/2012
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