Maria Sanfona e Baíco, personagens de uma mesma história de rua

Rua Antônio Augusto, número 1518, bairro da Aldeota, Fortaleza, Ceará. Ali eu morei, com meus pais e irmãos, oito filhos no total, até os 17 anos de idade. Casa modesta, conjugada a outras quatro, uma do lado direito e três do lado esquerdo.

A rua, até os anos 60 do século passado, era calçamentada com pedra tosca, pouco movimento de carro e me lembro ainda quando ela se estendia somente até a Rua Fiúza de Pontes, sendo a casa do Padre Dourado a última da rua. Uma casa grande, pintada de amarelo e portas marrons cuja calçada ostentava um pé de fícus-benjamin, árvore muito utilizada pela prefeitura da época para fornecer sombra e amenizar o calor escaldante que insistia visitar regularmente Fortaleza no verão. Acho que tinha mais de 30 metros de altura e suas raízes aéreas e ramos pêndulos, à noite, desenhavam figuras fantasmagóricas, que na inocência de criança povoavam meus sonhos. A partir das 18 horas não havia vivalma que me fizesse olhar para aquele lado da rua.

Pois é, minha adolescência toda foi passada nessa rua, onde convivi com figuras humanas interessantes. Uma delas foi com a nossa empregada Maria, portadora de deficiência congênita conhecida como cifose, vulgarmente chamada de corcundez, caracterizada pelo aumento anormal da concavidade anterior da coluna vertebral, promovendo alterações anatômicas acentuadas nos indivíduos portadores dessa doença. Para os meninos da rua ela era conhecida como Maria Sanfona, titulação que caracterizava a sua deformação e que a deixava possessa quando assim nomeada. Ela era pequena, quase da minha altura quando tinha seis anos, magra, feia e andava sempre correndo, talvez para esconder das pessoas o desvio que carregava.

Mas, diferentemente da personagem de Fernando Pessoa, Maria José, no texto “Carta da corcunda para o serralheiro”, Maria Sanfona portava uma alma belíssima, pois tinha muito carinho com a nossa família. Chamava meu pai de padim Aluísio e minha mãe de madinha Zuíla, mesmo não sendo afilhada deles, possivelmente de fogueira, ritual nordestino em festas juninas. Morou lá em casa por muitos anos, desconheço que tivesse família, mas aos domingos sempre saía para visitar parentes. Voltava ao anoitecer.

Meus pais gostavam muito de dançar e ir ao cinema. Viviam em festas e quando saíam deixavam a Maria Sanfona tomando conta da gente. Os maiores dormiam em suas camas e os dois menores, eu, de seis anos, e o Aloísio Filho, de cinco anos ficávamos dormindo na cama de nossos pais. Acho que tínhamos medo de ficar em nosso quarto, que não era forrado e ainda tinha uma telha de vidro, para entrada de luz. As sombras formadas nas paredes do quarto desenhavam figuras idênticas às produzidas pela árvore da casa do Padre Dourado.

Então, para espantar os nossos medos, Maria se colocava na cama entre mim e o Aloísio Filho. O que eu achava estranho era ela colocar meu pé, não sei se fazia isso com o Aloísio Filho, entre suas pernas, em cima de suas partes íntimas. Isso não fazia o menor sentido para mim, só vim dar conta desse comportamento depois de crescido, isto é, quando meus desejos sexuais afloraram. Outra atitude corriqueira dela, praticada até na frente de outras pessoas, mesmo adultos, era juntar os cinco dedos da mão direita, formando um cone e tocar nosso aparelho genital, dizendo que estava tirando um rapé, hábito de consumir tabaco em pó, bastante difundido no Brasil até o início do século 20. Talvez fossem os únicos prazeres sexuais que ela experimentava.

Na Rua Antônio Augusto daquela época também morava a família da dona Bila, não sei a origem do nome. Em uma casa sem muita estrutura, localizada em frente da nossa, habitava essa senhora, o marido já bastante velho, duas filhas e um filho com distúrbio mental, conhecido como Baíco, apelido que também desconheço a origem. Entretanto, o que ela mais detestava, e toda a família, era o filho ser chamado de flit, pelo seu péssimo costume, diziam, de comer moscas. Flit era marca de inseticida muito utilizado à época para o extermínio de tão indesejáveis insetos.

Baíco, quando molestado, ficava completamente fora de si. Violento, procurava esganar os seus detratores. Ele e a família perseguiam esses elementos por toda a rua, provocando confusão e ao mesmo tempo a alegria dos demais moradores, que saíam de suas casas para apreciar mais um espetáculo do circo da vida. Era deprimente e ao mesmo tempo hilário. Isso acontecia de dia e à noite, a criançada se divertia.

Eu quase fui vítima do Baíco, não por chamá-lo de flit, mas por acertar uma pedra bem no meio de sua testa. Aconteceu assim: no quintal de dona Amélia, uma senhora que lavava roupa para quase todas as famílias da Antônio Augusto e herdeira do terreno localizado no lado oposto da nossa casa, tinha um pé de manga jasmim, que ficava carregado em período de safra. Sempre ficávamos esperando uma manga cair, pois o terreno não tinha cerca. Naquele dia só eu estava ali, sentado no chão, aguardando que aquela manga caísse, que de tão amarela de madura dava até água na boca. Não sei por que, mas eu achava que conseguiria não deixá-la cair no chão, pois estava preparado para agarrá-la, não deixá-la se espatifar no chão, não tinha graça chupar uma manga tão bonita e machucada.

Esperei quase duas horas naquela posição, ela caiu bem em minhas mãos. Ao levantar-me, recebi um encontrão, parecia uma parede caindo sobre mim, fui ao chão e soltei a tão desejada manga. Eu tinha apenas 10 anos e era magrinho, o Baíco tinha mais de 14 e era bastante forte. Ele saiu correndo com a minha manga e eu não tive dúvida, apanhei uma pedra, não me lembro de que tamanho, e atirei em sua direção. Nesse momento ele olhava para trás, procurando determinar a minha localização. A pedra atirada por mim bateu em cheio bem no centro de sua testa, o sangue escorreu e sujou a manga. Ao perceber o sangue, ele jogou a manga fora e veio em minha direção. O que eu tinha que fazer era correr para a minha casa, encontrando-a com a porta trancada. Só deu tempo de gritar chamando meu pai e continuei correndo pela rua. Se o Baíco me pegasse seria um estrago, talvez a minha morte, tal a falta de controle dele nessas ocasiões. Não tinha ninguém na rua, era domingo, passava das 12 horas do dia, todos se preparavam para o almoço.

Felizmente meu pai, como uma flecha, apareceu junto do Baíco e aplicou-lhe uma gravata. Não sei de onde ele tirou tanta força para derrubar aquele ensandecido, acho que só o amor de um pai explica isso. Fui para casa e fiquei mais de duas semanas só saindo de casa acompanhado. O Baíco também não aparecia na rua, com certeza ficou com medo de meu pai.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 17/02/2012
Reeditado em 24/03/2012
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