Apesar de tudo
1
A rua ladeirada. O velho sobe-a devagar, cabisbaixo.
A tarde escurece ante o início da noite. O céu torna-se cinzento fechado, sem nuvens. Nas residências às laterais reina um silêncio que espanta o velho, pois por aqui há sempre um rádio ligado, uma voz alta, numa arenga, o choro de uma criança.
- Ah, se toda tarde fosse assim...
Fala baixinho, dando voz ao que reflete. E chega defronte ao muro baixo da residência, na qual mora. Puxa o ferrolho abrindo o portão ao centro do mesmo e adentra na área pequena que se interpõe entre o murinho e o terraço, com o gradil e, abrindo-o, entra.
A cadeira de balanço ao lado. Senta-se. Nessa cadeira, Rute se sentava. Silenciosa. Contida. Resignada à velhice.
Ele então, gracejava, buscando reentregá-la ao presente:
- Pensando “na morte da borrega?”.
Ela sorria, entendendo-o:
- Me lembrando de quando você chegava por essa hora da fábrica...
Sorrindo ele tornava a falar:
- Você de novo com o passado... O que passou, morreu Rute.
Ela retrucava, no hábito ultimamente adquirido de não aquiescer com o que ele dizia:
- A gente é fruto do que viveu. Somos conseqüências... Assim é a vida!
Calavam-se. Conhecendo-se. Evitando nova discussão. Hoje...
- Boa tarde, Seu Irineu.
A voz da adolescente morena, esguia, bonita, que desce a rua.
- Boa tarde, menina linda!
A mocinha sorrindo prossegue a descida da rua, sem se voltar, feliz com o elogio.
Tudo passou... A Rute hoje não mais existe. Sim, tudo passou como num sonho no qual, a gente desperta para a cruel realidade, que nos domina. Impulsiona o corpo para trás e cerrando os olhos se cadencia.
As luzes das residências se acendem e de um rádio chega à prece das seis, como anuncio de que a noite nasceu, é senhora de tudo.
Cabeceando, o velho cochila, sentindo uma paz, um aconchego...
2
O vizinho da casa à esquerda do velho Irineu, que está imóvel na cadeira, o rosto pálido, arreado ao tronco magro, descreve aos dois policiais o que sucedeu:
- Precisei de um martelo e vim pedir emprestado ao Seu Irineu e quando cheguei aí nesse gradil vi o homem sem se mexer, com o aspecto de quem está morto... Aí liguei pra os senhores.
Silencia. Emocionado. A fisionomia mulata, de traços grosseiros suada.
Voltando-se, o sargento brancoso tenta lhe acalmar o espírito. Conhecedor que é dos imprevistos pelos quais cada um de repente enfrenta:
- Você, moreno fez muito bem no seu proceder de bom vizinho.
Então se dirige ao colega que mantém a atenção presa ao velho imóvel, como uma estátua:
- Duílo ligue pra perícia. Comunique tudo isso. O nosso velhinho aqui já era. Descansou...
- Certo sargento Eliel.
Então em seguida, pondo a mão no bolso da túnica, o soldado auxiliar retira o celular e faz a comunicação ao pessoal do setor de perícia.
Aguardam. Calados. Contidos em suas reflexões. Contudo, o sargento logo torna a falar:
- Moreno se quiser ir cuidar de sua vida está liberado. Qualquer novidade eu lhe convoco.
- Tudo bem sargento. Aqui está o número do meu celular. É só chamar. Com licença.
Afasta-se, tentando se conter, não demonstrar ainda a perplexidade ante a cena que presenciou e ainda presencia, fazendo-o pensar em como o ser humano é frágil, de repente... Está tudo concluído, se parte para o desconhecido.
- Pode ser que eu esteja enganado, mas me parece que o nosso velhinho sofreu um desses ataques fulminantes.
- Positivo sargento!
Calam-se novamente.
Então da indústria de papel e celulose CIPEL, nas proximidades, vem o grito estridente, prolongado da sirene convocando o operariado a assumir o novo turno.
Sim, apesar de tudo, a vida prossegue, com força inquestionável.
Você, no momento, é um dos maiores contistas “urbanos” dentro deste enorme Brasil, que me faz lembrar os magníficos e imortais trabalhos de Machado de Assis. Parabéns pelas (boas) críticas recebidas. Recebidas e merecidas.
Humberto Del Maestro