Basta muito pouco para ser feliz

Pedro é o seu nome. E apesar do nome, não tem discípulos e não é discípulo de ninguém. Não conheceu seus pais, não tem filhos, não tem família. Viveu em companhia de moradores de rua até aos doze anos. Depois, se largou sozinho para São Paulo, clandestinamente, em uma carroceria de caminhão. Passou fome, frio, mas conseguiu chegar vivo à capital paulista, o seu sonho. Ouvira muitas histórias sobre essa fabulosa cidade a partir dos moradores de rua com os quais conviveu, que também experimentaram semelhante proeza e tiveram que voltar à cidade natal, pois a vida lá não era moleza, principalmente para quem não tinha instrução escolar.

Em São Paulo trabalhou duro na construção civil, como auxiliar, carregando tijolos, enchendo de cimento, areia e pedras a máquina de fazer concreto. Inicialmente o trabalho era irregular, já que não tinha idade para tal. Recebia pouco pelo serviço prestado. Aos dezoito anos conseguiu tirar carteira de trabalho e foi contratado por uma construtora de médio porte. O salário melhorou, tinha direito ao almoço diário e dormida no canteiro da obra.

Reservado, não era fácil de fazer amizade. Sempre se lembrava das recomendações dos companheiros de rua: é preciso ter cuidado com os companheiros de trabalho, há sempre alguém querendo te ferrar. Alguns estão ali para tirar proveito dos mais ingênuos. O desvio de material é quase constante e a culpa sempre recai nas costas dos mais novos. Cuidado ao receber o pagamento, que deve ser bem guardado, em lugar que ninguém mais saiba.

Com o tempo ele foi ficando esperto. Já conhecia a cidade, percorria as ruas sempre a pé, para não gastar dinheiro. Só tinha os domingos para fazer isso. Andava o dia todo, admirando a majestade dos edifícios da Av. São João, da Ipiranga, da Brigadeiro Luiz Antônio, Praça da Sé e outras, a Av. Paulista não era como hoje, grande e bela. Ele só parava para o almoço. Acordava cedo e sua primeira visita era à Igreja da Sé. Lá assistia à missa, às vezes duas por domingo. Gostava de estar ali, entre pessoas desconhecidas, mas educadas e bem-vestidas. Alguns rostos já lhe eram bastante conhecidos, eles também estavam lá todos os domingos. Quando perdia alguns daqueles rostos, quando não os via por mais de um mês, imaginava que os seus donos haviam morrido, muitos já tinham alcançado a idade de partir dessa para melhor. Para aqueles, sempre dedicava um pai-nosso que decorara durante as missas a que assistira.

Viveu em São Paulo por mais de 55 anos, casou-se; ele com 32 e ela com 20. Desconhecia completamente os parentes dela, não tiveram filho e a mulher morreu cedo, aos 25 anos de idade, acometida por doença até hoje não muito bem esclarecida para ele. Ao tentar salvá-la gastou todo o dinheiro que havia juntado durante os primeiros vinte anos de trabalho na metrópole paulistana. Decepcionado, resolveu não mais se casar, nem mesmo namorar, recolheu-se ao trabalho. Agora só pensava em juntar dinheiro e voltar para Fortaleza, à procura de algum familiar, sabedor que havia nascido na capital alencarina.

Aqui chegou há pouco mais de cinco anos. Saiu de São Paulo com R$ 10.800,00 no bolso, uma mala que contunha um sapato preto bico fino, poucas roupas, entre elas um terno escuro e uma camisa branca social, coisas não muito caras, mas de bom gosto. E também com a vida vazia de esperança, a idade já não lhe oferecia muito. Seu maior desejo era comprar uma pequena morada, onde ele pudesse passar seus últimos tempos de vida. Teria que ser próxima de uma igreja católica, para frequentá-la aos domingos. No bairro Dunas encontrou uma casa de três cômodos: quarto e sala/cozinha e banheiro/sanitário, pouco mais de 30 metros quadrados, caiada de branco e em bom estado. Comprada contrarrecibo, em região de invasão, não tinha direito à escritura, mas se achava seguro naquela condição. Agora vivia da aposentadoria.

Encontrei-o pela primeira vez em um domingo na Igreja Nossa Senhora de Lourdes, durante a missa das 20 horas. Minha atenção foi despertada para aquela figura de terno escuro – indumentária que ninguém mais usa para ir a uma missa, a não ser em casamento - e camisa social branca, sem gravata, de cabelos brancos e fartos, impecavelmente penteados, fisionomia sofrida, mas agradável aos olhos, a rezar e a executar os gestos e movimentos que os demais fiéis faziam. No momento em que o celebrante dizia: “...dai-nos a paz e a unidade”... “a paz do Senhor esteja convosco...” e convidava a todos a se cumprimentarem, ele se dirigia apressadamente às pessoas presentes, estendia-lhes a mão direita e com grande sorriso nos lábios repetia as palavras proferidas pelo sacerdote: a paz do Senhor esteja convosco. Era com satisfação que pronunciava estas palavras e replicava o gesto do aperto de mão, tentando alcançar o maior número de presentes à solenidade da Santa Missa. Para mim, nessa hora, o seu rosto se iluminava.

Encontrei-o por vários domingos seguidos, sempre com o mesmo traje, com a mesma postura, realizando os mesmos rituais, principalmente o do aperto de mão. Fiquei intrigado porque alguns encontros foram em horário diferente daquele que eu costumava ir à missa: ora na missa das 18 horas, que eu ia quando precisava realizar alguma atividade no final da noite de domingo, ora na missa das 20 horas, horário em que costumeiramente vou à missa.

Em uma dessas ocasiões não me contive e no final da missa resolvi conversar um pouco com o senhor de terno escuro. Aproximei-me e ele me recebeu com aquele costumeiro sorriso nos lábios, indicando que já me conhecia, mesmo que só de vista. Eu fui direto e perguntei-lhe por que ele assistia a duas missas no mesmo dia. Ele também foi direto e respondeu que assistia quatro, duas pela manhã e duas à noite.

Mais curioso perguntei o porquê, por que tanto fervor?

Ele pediu-me para nos sentarmos em uma mureta que circunda a Igreja. Todas as pessoas já tinham se dirigido para seus carros a caminho de casa ou para outros destinos. Uma pessoa trancava a porta principal da Igreja. Estávamos sós, eu e ele, o clima era agradável, soprava um vento ameno, não fazia calor, a lua iluminava o ambiente e a escuridão só se fazia presente debaixo das copas das árvores que ao redor daquele local foram plantadas.

Aquela figura, até então enigmática para mim, foi se tornando concreta. Mãos calejadas, mas limpas, não usava perfume, mas também não exalava odor nenhum, só um perfume de sabonete e talco baratos. Sapatos limpos, com pouco de barro pregado na sola e calcanhar gasto na lateral, indicativo de que andava muito a pé. Terno e camisa limpos e bem passados. Tudo aquilo apontava para uma pessoa cuidadosa.

Minha surpresa foi total quando ele falou dos motivos pelos quais assistia a quatro missas aos domingos. Primeiro porque acreditava em Deus, depois porque gostava do ambiente, de estar junto das pessoas que frequentavam aquela igreja. Apertar-lhes as mãos e receber o sorriso e o carinho daquelas pessoas lhe fazia bem, lhe fazia sentir-se gente, participar de uma comunidade, de ter amigos, que pelo tempo que ele os conhecia - embora, para mim, nenhum deles tenha demonstrado conhecê-lo - já os considerava membros de sua família, coisa que ele nunca teve na vida.

O resto da conversa foi ele contar sua vida e eu me deliciando com aquela narrativa cheia de detalhes, de momentos vividos por ele só e que só ele poderia descrevê-los tão bem. Foi um prazer conhecer essa figura, que não precisa de muita coisa para ser feliz.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 16/02/2012
Reeditado em 23/03/2012
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