O senhor das manhãs

Acordo todos os dias, pontualmente, às 5 horas da manhã. Como um ritual, sem ser metódico, vou para a sacada de meu apartamento apreciar os primeiros movimentos do dia.
Exatamente na mesma hora, também todos os dias, um senhor, beirando os setenta anos, bem-disposto, aparece na sacada do prédio em frente ao meu. Vestindo apenas uma bermuda, ele retira de um prego fixado em uma das paredes de sua varanda uma gaiola. Nela dá para perceber um casal de passarinhos, não sei se canários, curiós ou periquitos. O certo é que nunca tive a curiosidade de saber. Só sei que daqui não consigo perceber qualquer canto, mas isso não interessa, pois não saberia distinguir esses pequenos pássaros pelo canto, nem mesmo pela plumagem. Depois de limpar a gaiola e colocar comida para as suas aves, repõe a gaiola no lugar, arruma as cadeiras e a mesa da varanda, tendo o cuidado de colocá-las assimetricamente dispostas. Fica olhando para o seu feito por alguns segundos, se achar que ainda não está ao seu gosto, dá mais uma “arrumada” e assim procede até ficar satisfeito. Em seguida, some-se por uma porta envidraçada, que faz comunicação entre a varanda e a sala de visita.
Por alguns minutos, fico a pensar o que estaria fazendo aquele respeitável senhor dentro de sua casa. Estaria tomando banho, tomando remédio, fazendo ginástica? O certo é que leva uns bons minutos para ele aparecer novamente diante de meu campo visual.
Desta vez ele reaparece na área que dá acesso à porta principal do edifício. São 6 horas. Ele cumprimenta o porteiro, faz carinho em duas crianças que as babás trazem para o pátio, a fim de se beneficiarem dos raios de sol que invadem aquela área do edifício, todas as manhãs. Ele também tira “prosa” com as babás, que carinhosamente retribuem com sorrisos e alguns afagos. O velho senhor sorri também e se dirige para a porta do edifício.
Vestido com uma bem passada bermuda branca de linho, já não mais aquela com a qual deu comida aos pássaros, uma camisa branca de malha e calçando meias e tênis branco, também impecavelmente limpo, ele caminha em direção à padaria, que fica a três quadras de nossos edifícios. Pela sua aparência, deduzo que já tenha tomado banho e colocado algum perfume de boa qualidade, pois sempre ao passar pelas babás, elas fazem o gesto de cheirar a cabeça do velho e lhe dirigem alguns comentários. Movimentos leves com a cabeça denunciam que ele agradece satisfeito.
Espero em minha varanda, durante uns 15 a 20 minutos, pelo retorno do distinto senhor. De longe, avisto sua figura magra e elegante, passos lentos, segurando alguns pães dentro de uma sacola de plástico. Acho que sua demora se deve, também, à espera para trazer para casa pães quentinhos. Ao chegar à porta de seu prédio, o porteiro tenta ajudá-lo a subir a escada que o levará até a área de acesso ao elevador. Ele recusa a ajuda, com um gesto delicado, é claro. É a demonstração de que ele ainda é independente. O porteiro sorri amigavelmente.
Deixo o meu ponto de observação e vou preparar-me para as minhas tarefas diárias. Só voltarei a ver o velho amigo na manhã do dia seguinte, pois saio para trabalhar às 7h30min e só volto às 19h, quando então o saudável senhor já se recolheu ao seu quarto para o descanso merecido e a recuperação das energias. Nunca me preocupei com o que ele faz, qual sua profissão, se ainda trabalha, se é aposentado, condição mais provável.
Hoje, acordei ansioso, com aquela sensação de que algo tinha acontecido ou estava para ocorrer. Às vezes, penso que não é só mulher que tem sexto sentido. O homem também tem, só que não gosta de admitir, pois é coisa de mulher.
Pois bem. Fui para a minha “torre de observação”, para acompanhar mais uma vez os primeiros movimentos do dia. O sol teimava em não acordar. Poucas pessoas, pouquíssimas mesmo, desfilavam suas preguiças na rua ainda sonolenta. Apareceu uma empregada doméstica, obrigada a deixar sua casa na escuridão da madrugada para fazer o café da manhã dos patrões. O jornaleiro deixou na portaria de meu prédio alguns exemplares do jornal que trazia. Um ciclista passou pedalando lentamente sua preciosa bicicleta, era vermelha e lustrava muito. Alguns carros passavam em frente do prédio. Uns carregando crianças e adolescentes para a escola. Outros, pessoas a caminho de seus locais de trabalho. Contudo, algo me incomodava, só não sabia o quê.
O meu amigo ainda não aparecera na sacada de seu apartamento. Sim, eu já o considerava meu amigo, mesmo não o conhecendo pessoalmente. Nunca fomos apresentados um ao outro. Às vezes ele olhava para cima, via-me e sorria. Eu correspondia, pois acreditava que aquele gesto era uma saudação, um bom-dia. Ele estava demorando. A gaiola continuava ali. Os pássaros pareciam agitados, talvez com fome ou mesmo reclamando da falta de higiene na gaiola. Espero e nada acontece no apartamento do amigo. Já passam das 6h30min. Ele também não desceu para comprar o pão. Olho para baixo e não vejo as babás nem as crianças. O porteiro quieto, não faz movimentos, só para abrir e fechar o portão da garagem e a porta principal do prédio. Seus cumprimentos aos moradores que entram e saem são ligeiros e solenes. Há certa tristeza naquele ambiente.
Resolvo então interfonar para a portaria de meu prédio e perguntar se algo estava acontecendo no prédio defronte. A resposta foi imediata. - O dr. Osvaldo morreu ontem à noite – eu não sabia que ele era doutor. O enterro está marcado para as 14 horas. O corpo está sendo velado na capela da funerária Santa Madalena.
É incrível! Eles sabem de tudo!
Uma parte de minhas manhãs se foi. E agora, com o que eu vou me ocupar nessas horas de minhas manhãs? De agora em diante procurarei não acordar tão cedo.
São 7h30min, estou me preparando para fazer minha primeira e derradeira visita a um velho amigo. Vou ao seu velório, quem sabe, assim possamos nos conhecer melhor.
Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 15/02/2012
Reeditado em 23/03/2012
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