Homens também recebem flores
Mário sempre foi pessoa delicada. Criança ainda já gostava e era incentivado pela mãe a cuidar do belo jardim de sua casa. Casa modesta, diga-se de passagem, mas contava com todo o conforto de um lar de família nordestina de classe média.
Dona Matildinha, como as amigas chamavam sua mãe, viúva de um coronel do exército brasileiro, consagrava verdadeira adoração pelo filho, entretanto, sem exigir-lhe os respeitos devidos e o comportamento masculino necessário para o desenvolvimento do filho, condição cobrada veementemente pelo pai militar e cearense, cabra macho.
Habituado ao regime da caserna, o Coronel opunha-se ao fato do filho ter seu tempo livre totalmente dedicado às práticas de jardinagem. Só não o proibia terminantemente porque não queria desagradar à esposa, pessoa que ele considerava frágil e a quem dedicava respeito, admiração e, sobretudo, muito amor. Mat, como ele a chamava carinhosamente, era filha de general, moça prendada, falava diversas línguas, tocava piano divinamente, diziam, cantava ópera, tinha o dom da pintura e cuidava muito bem de seu jardim, onde havia plantado rosas; begônias (Begonia elatior) da família Begoniaceae; avencas (Adiantum capillus veneris) da família Polypodiaceae; brinco de princesa (Fuchsia); camarão vermelho (Justicia brandejeana); cróton (Codieum variegatum); bico de papagaio (Euphorbia pulcherrima Willd); cheflera (Schefflera arboricola((Hayata)Merr); dracena-confeti (Dracaena godseffiana Hort.); brinco de ouro (Duranta repens L.'Aurea', léia-vermelha; léia-rubra (Leea rubra Blume); gerbera gossypina e outras tantas espécies de plantas ornamentais possíveis de ali serem trabalhadas.
Matildinha cursou agronomia, depois da morte do marido, para conhecer melhor as plantas e ter ocupação na vida além dos afazeres domésticos e da vida social, dizia ela. Não pretendia se dedicar à profissão, mas se encantou com a botânica, vindo a ser a melhor aluna nessa disciplina, apesar da idade e das ocupações domésticas. Tudo que aprendia nas aulas e nos livros procurava colocar em prática utilizando o seu jardim como laboratório experimental. Fazia cruzamentos, enxertias com uso de cavalos mais produtivos e resistentes, propagação in vitro, avaliava as fórmulas de adubação, corrigindo-as quando não conseguia plantas viçosas e saudáveis, só não usava inseticidas em suas plantinhas. Experimentava também os tipos de vasos para plantio e a relação solo matéria orgânica. Seu jardim era imenso e agora ela tinha bastante tempo para se dedicar ao que mais gostava, sentia-se forte por isso. – Eu gostaria de poder ter mostrado ao meu marido essa minha nova performance, pensava ela constantemente. O seu marido morreu depois de três anos lutando contra um câncer e ela esteve sempre ao seu lado, ao mesmo tempo em que cuidava de seu único filho, Mário.
Era com ele que ela passava horas e horas no jardim, cuidando das plantas. Havia uma estufa e nela várias bancadas e uma parafernália, isto é, uma coleção de objetos e apetrechos que Mat usava em seu labor diário com as plantas. No início o menino só olhava com curiosidade, acompanhando o movimento da mãe para lá e para cá. Ela procurava explicar o que estava fazendo, mas ele não entendia nada.
Com o passar do tempo Mario foi compreendendo o que aquilo significava. Anotava tudo em um caderninho enquanto sua mãe falava com carinho das e com as plantas. Todos os seus movimentos, naquele ambiente, eram realizados com delicadeza e respeito, era um rito que impressionava a quem ali estivesse.
Mário foi se apaixonando pelo trabalho da mãe e não via a hora de voltar da escola para poder ajudá-la nas tarefas do jardim e da estufa. Queria aprender como ela conseguia obter exemplares de rosas e outras plantas que ninguém tinha. Sua mãe não se fazia de rogada e, com paciência explicava-lhe tudo, só pedia que ele guardasse segredo, para que suas descobertas não fossem usadas comercialmente. Ela pretendia montar uma organização não governamental e distribuir, gratuitamente, para as pessoas interessadas na replicação de jardins, os exemplares frutos de suas pesquisas. O primeiro a ser contemplado com esses exemplares foi Mário, que agora já ganhara um pedaço do terreno que a família possuía, para as suas próprias experiências.
Durante as exposições a Mário, Mat - ele também a chamava assim – procurava passar todos os passos para o cultivo das plantas. Para as rosas ela explicava ser esta uma das flores mais populares no mundo, já cultivada desde a Antiguidade, há mais de cinco mil anos, embora haja relatos do encontro de fósseis dessa flor na forma selvagem datada com mais de 35 milhões de anos. Mat gostava de demonstrar conhecimentos nessa área, o que deixava Mário bastante orgulhoso e ela sabia disso. Continuando, ela explicava: as rosas pertencem à família rosaceae, são arbustos ou trepadeiras e seu cultivo é relativamente fácil. Você deve procurar um local ensolarado e bem arejado, para facilitar o seu florescimento e evitando o surgimento de fungos nas folhas. O seu substrato de sustentação pode ser qualquer tipo de solo, mas é melhor um solo argiloso, com boa drenagem e pH entre 6,5 e 7, isto é, neutro. Quando necessário você pode corrigir o pH com a adição de calcário dolomítico para elevá-lo ou sulfato de ferro para baixá-lo. Para o plantio você deve cavar cerca de 40 cm de profundidade fazer a adubação necessária e o plantio. Deve-se evitar, sempre que possível, realizar o plantio em meses muito quentes. Até antes da floração você deve regar todos os dias moderadamente. Depois de uma a duas vezes por semana. Mário, atento, anotava tudo. Trate-as sempre com carinho, como se fossem belas donzelas, pedia ela para o filho.
Sempre foi assim para todas as plantas cultivadas no jardim de Mat. Foi assim também que Mário aprendeu as técnicas do cultivo de plantas ornamentais e passou a admirar principalmente as rosas e flores, seu jardim era formado somente dessas plantas. Também ele incorporou a mania de presentear as pessoas com rosas e flores, fossem homens ou mulheres. As mulheres adoravam, os homens achavam esquisito, os mais distante dele, quem não o conhecia bem diziam que isso era coisa de baitola. Ele também gostava de receber rosas e flores, sempre se manifestava assim quando lhe perguntava o que gostaria de receber como presente.
Já adulto, trabalhando em um hotel, Mário experimentou, por várias vezes, atos de violência psicológica – bullying – cuja origem era seus colegas de trabalho. De traços finos, elegante, trato delicado e bastante cortês, originário da educação imprimida pelos pais, ele era conhecido como a bonequinha do pedaço. Ele não se importava, pois sabia de sua masculinidade e não precisava demonstrar o contrário para aqueles que o prejulgavam.
Certo dia Mario recebeu um ramalhete de flores acompanhado de um cartão que dizia: “Eu sei que você se identifica muito com elas. Eu gostaria que você se identificasse também comigo. Beijos e feliz aniversário”. Isso lhe deixou bastante intrigado, nem imaginava quem fosse. Um dos colegas de trabalho foi logo perguntando se era do namoradinho dele. Em resposta, Mário apenas colocou o ramalhete em um vaso de cristal que mantinha em sua mesa de trabalho, encheu-o com água até ao meio e o colocou de volta ao seu lugar. Todos os colegas riam dele, pois era a primeira vez que isso acontecia no ambiente de trabalho. As flores só foram para o lixo quando ficaram murchas, cinco dias depois. Os falatórios foram muitos, mas ele não deu bolas ao escárnio dos colegas.
No dia em que as flores foram para o lixo, Mário recebeu um buquê de rosas vermelhas acompanhada de um cartão com os mesmos dizeres e novamente sem identificação do ou da remetente. Intrigado ele procedeu da mesma maneira anterior, só que passou a desconfiar que fosse brincadeira dos colegas de trabalho, pois, pela manhã ele havia colocado o ramalhete no lixo e lavado o vaso de cristal. Os gracejos voltaram e a desconfiança aumentou, havia até aposta para saber quem era o pretendente. Mário continuava na sua passividade quanto ao acontecimento inusitado, não sabia quem estava mandando flores para ele, e o mais misterioso, mandando para o seu local de trabalho. Quase nenhuma pessoa do seu relacionamento pessoal conhecia sua atividade profissional, seu local de trabalho.
Foi assim durante os doze meses, sempre flores e o cartão sem identificação. Os colegas de trabalho já não mais o perturbava. Mas o ritual era o mesmo, jogar as flores murchas no lixo, lavar o vaso de cristal, enchê-lo com água até ao meio e colocar as novas flores, repondo o conjunto no local de sempre. Ele próprio já nem procurava saber o autor ou autora desse gesto tão amável. Se fosse um colega ou uma colega de trabalho não importava, o certo é que ele gostava de flores e ficava satisfeito quando nova remessa chegava. A expectativa ficava quanto à variedade que iria receber na próxima vez.
No dia de seu aniversário, um ano depois do envio do primeiro ramalhete, logo pela manhã Mário foi chamado ao escritório do proprietário do hotel em que trabalhava. Ficou apreensivo porque alguns colegas tinham sido demitidos na semana anterior. Seria uma lástima ser demitido logo no dia de seu aniversário. Não que isso fosse um acontecimento que abalaria sua vida, pois ele ficara com a herança da família, uma bela casa, dois apartamentos alugados, mas ele gostava de seu trabalho, do ambiente, apesar dos pesares, e acima de tudo, porque estava sempre conhecendo gente interessante.
Ao chegar ao escritório do patrão, que pouco o tinha visto, ficou surpreso. Em sua mesa havia um belo ramalhete de flores, arranjado de igual maneira aos que ele recebia. O patrão solicitou que ele sentasse na cadeira a sua frente, o que ele fez, o felicitou pelo aniversário, deu parabéns e entregou para Mário um cartão igualzinho aos que ele vinha recebendo durante os doze meses, no qual dizia: “venha jantar em minha casa hoje à noite”. A letra era a mesma de todos os cartões recebidos, só os dizeres eram diferentes. Confuso, Mário não conseguia dizer uma só palavra. A dúvida lhe atormentava, será que é ele quem me manda flores todas as semanas? Por que? Ele é bem casado, tem família estruturada, esposa elegante e bonita, duas filhas lindas – ele olhou para o retrato da família colocado no canto da mesa de trabalho do patrão - e não parece ser homossexual. Será que ele tem dúvida de minha masculinidade? As brincadeiras dos colegas chegaram ao seu conhecimento? O que fazer? O que fazer? Isso lhe martelava a cabeça. Se recusar posso ser demitido, se for posso ter a maior decepção e não quero acreditar nessa possibilidade, nunca fiquei sabendo sobre qualquer deslize daquele homem que se encontrava à minha frente, decidido, trabalhador, competente vitorioso e um ser humano sem igual – diziam -, pensava Mário.
Olhando insistentemente para o cartão, mais precisamente para os seus dizeres ele continuava calado. Uma voz lhe despertou desse transe: “então, estarei esperando por você a partir das dez horas. O endereço você tem aí no cartão. Não aceito um não como resposta”. Mário, agora mais presente àquela sala sorriu, disse que estaria lá na hora marcada e só perguntou com que traje. Não tinha outras palavras para pronunciar, queria sair o mais depressa possível daquele ambiente, para poder organizar sua memória, refazer-se do susto e daquela situação inimaginável. Sabia que não poderia contar para nenhum de seus colegas de trabalho o que acabara de presenciar. Seria o mesmo que apresentar sua carta de demissão, o que não pretendia fazer tão cedo.
À noite, às dez horas lá estava Mário em frente ao grande portão da mansão do senhor Revuelta, um espanhol há muito radicado no Brasil. A indecisão ainda o dominava, entrar ou não entrar. O que aconteceria se ele não entrasse? O que aconteceria se ele entrasse? Ele nunca havia ficado em tamanha enrascada e não poderia tirar essa dúvida com ninguém. O jeito era tirar cara ou coroa, cara ele entrava, coroa ele desaparecia dali para sempre, nem mesmo pisaria no hotel novamente. Deu cara, apertou a campainha e logo dois seguranças apareceram. Ele pensou, pelo menos não estarei só com o patrão, qualquer coisa gritarei. Os seguranças perguntaram quem ele era, abriram o grande portão preto e Mário entrou. Parou para admirar o belo jardim que ornava a alameda que dava acesso ao prédio principal, residência do senhor Revuelta conforme indicara um dos seguranças. Uma construção de mais de 1500 metros quadrados, distribuídos entre três salas, seis quartos, uma grande cozinha e demais dependências, ficou sabendo Mário depois da longa conversa que teve com o patrão.
À porta esperava o patrão, os seguranças haviam informado da chegada do convidado pelo rádio. Sorrindo ele fez Mário entrar naquele majestoso ambiente muito bem decorado. Primeiro a sala de espera, ornada com pinturas e móveis antigos: ao canto esquerdo uma mesinha de chá, duas cadeiras do século XVIII, outra mesinha ao lado direito e sobre ela estatuetas de marfim e de bronze, esta última de um belo corcel, contrastando com o toque oriental dado pelo abajur de origem japonesa, tudo combinando harmoniosamente com o tom amarelado fosco das paredes, o piso em madeira de lei e o belo lustre em cristal pendente no centro da sala. A sala seguinte era luxuosa, várias poltronas e móveis colocados sofisticadamente, trabalho primoroso de arquiteto muito competente, pensava Mário. Era tanta beleza que ele, de deslumbrado que ficou, não mais observava com detalhes a presença de móveis, obras de arte, lustres, tapetes e os livros catalogados por assunto e autor em uma grande estante existente na biblioteca da casa. Aí também ele percebeu, havia um piano de cauda marca Steinway, fabricado em 1923, com todos os metais cromados, igual ao que sua mãe tocava, e que ainda hoje tem conservado em sua casa. Ele também notou várias poltronas colocadas de frente para essa magnífica obra de arte, formando uma espécie de sala de concerto. O patrão explicava tudo, mas pouco ele ouvia, sempre ocupado em admirar toda aquela beleza. Próximo ao piano ele parou, ficou a fitá-lo demoradamente, como se suas lembranças o levasse ao tempo em que ao lado de sua mãe ele aprendia interpretar as principais partituras de pianistas famosos.
O senhor Revuelta, após perguntar sobre seu interesse por pianos e se ele sabia tocar, abriu a tampa do instrumento e pediu que ele tocasse alguma coisa. Com um sorriso de satisfação ele sentou ao piano e começou a tocar a sinfonia número seis de Beethoven, também chamada Sinfonia Pastoral. Já bem ambientado naquele espaço, Mário não percebeu que mais gente se juntara a ele e ao senhor Revuelta; sua esposa e suas duas filhas, também apreciadoras de Beethoven. Ao final daquela primeira demonstração de refinado talento musical, Mário foi surpreendido por aplausos tímidos, mas de significativo efeito. Realmente estava entre os familiares do patrão, não estava sozinho com ele.
Depois das apresentações formais, ele notou aquela figura feminina que nunca lhe tinha saído da cabeça. Só a vira uma ou duas vezes, há dois ou três anos, no saguão hotel onde trabalhava, não sabia que era filha do patrão, pelas duas vezes que a viu a perdeu de vista, nem mesmo deu para perguntar quem ela era. Aos colegas ele não teve coragem de fazer essa pergunta. Guardou para si aquele momento, pois da última vez ela sumiu e agora ele percebera que havia passado um ano. Ele foi informado que Gisele, esse é o seu nome, no mesmo dia de seu aniversário, isto é, há um ano, ela fora complementar seu curso de piano em Paris.
O jantar foi alegre, e todos queriam saber sobre a vida de Mário. Quando falou dos pais o senhor Revuelta informou que conhecera o avô de seu convidado, o General Antônio Ávila, pessoa honesta e grande militar, completou o anfitrião do jantar. Mário ficou lisonjeado e também falou das qualidades do General e do pai Coronel, falecido quando ele era ainda adolescente.
Terminado o jantar, todos retornaram à biblioteca da casa e Gisele fez uma homenagem ao visitante e os outros presentes, tocando a sinfonia número quatro, também de Beethoven, conhecida como a sinfonia da felicidade. Ao término, as palmas foram mais calorosas, agora todos estavam alegres e mais descontraídos. Nessa ocasião Gisele deixou a banqueta retangular do piano, de estrutura reforçada e estofamento alto cujo conforto vinha do acabamento de alto padrão em veludo alemão. Dirigiu-se à sala de estar, apanhou um buquê de rosas vermelhas, que simbolizam amor, respeito, coragem e paixão e voltou para a biblioteca. Antes de entregá-lo ao Mário, pegou um cartão que estava entre as rosa, escreveu alguma coisa e colocou-o novamente entre as rosas entregando o buquê para Mário. Aquele buquê tinha as mesmas características dos que ele havia recebido desde o seu aniversário do ano anterior. No cartão estava escrito, com a letra de sempre: “me apaixonei por você desde a primeira vez que o vi”. Espero ser correspondida. O rosto do rapaz se encheu de alegria e grande sorriso se mostrou em sua face. Para Gisele ele não precisava dizer mais nada, ela havia sonhado que o sim dele seria assim, essa alegria espalhando por todo o seu corpo, não só pelo rosto. As outras personagens que se encontravam na biblioteca se recolheram a outras dependências da casa. Os dois ficaram a sós. Juras de amor foram proferidas, caricias foram trocadas, estava selado mais um pacto de amor.