SANTA TEREZA, MAIS QUE UMA PADARIA, UM LUGAR DE HISTÓRIAS

“Tem certos dias em que penso minha gente, e sinto assim todo o meu peito se apertar...", ouvindo essa linda letra de “Gente Humilde”, de Chico Buarque, cantada por Fagner, não pude deixar de lembrar das pessoas que cruzaram nossos caminhos e que, com o passar dos anos, fazem-se importantes. Costumo dizer que, como o bom vinho tem seu tempo de maturação e essa só se dá sob o olhar atento do enólogo, também as lembranças têm seu tempo para aflorar. Ou parafraseando Heráclito, filósofo pré-socrático: “ao se mergulhar no rio pela segunda vez, seu leito já não será o mesmo”. O mesmo se aplica às lembranças que contadas e recontadas jamais serão iguais. Não porque quem as contou tenha acrescentado ou omitido fatos, apenas porque com o tempo o narrado adquiriu outra dimensão ou significado. Sabendo que o que se segue pode ter sido mencionado em crônicas passadas, antecipo-me às escusas.

Era uma tarde chuvosa, mês de frio e as pessoas transitavam encolhidas na tentativa de se protegerem do clima propício para uma sopa, um chocolate quente, um bate-papo despretensioso acerca da vida. Entrei na padaria Santa Tereza e pedi a famosa canja que dada à fama adquirida, ouvira dizer, e acho que já narrei isso em textos passados, fora servida quando da comemoração da Abolição, nesses tempos sua procura torna-se quase um mantra. Entre o pedido e a chegada daquela secular iguaria, notei as pessoas ao redor. Em frente a mim havia um casal de senhores em idade que sugeria ser perto dos 70. Ele, um senhor alto, corpulento, falante e gesticulador. Ela, próximo de l,60m uns 50kg. Falava tão baixo, se comparado ao companheiro, que seu par tinha que se curvar para escutá-la. Claro que a conversa não ouvi, mas a cena me chamou a atenção. Primeiro porque o garçom já os conhecia há um bom tempo, pois quando os viu ao balcão perguntou pelo filho, ao que responderam que já lhes dera um neto em idade de 10 anos. E segundo, porque a demora da canja não causava, nem naquele casal nem nos demais fregueses, rubores faciais de impaciência. Ao contrário, lhes proporcionava a possibilidade da conversa, do reconhecer-se, da aparência sutil e utilíssima, que a vida está no aproveitar o tempo no próprio tempo. A demora, que desconfio tratar-se de uma estratégia da padaria para permitir esse deleite, facilitava o deixar-se levar na conversa que se dá, nas lembranças que cada qual tem, no significado que cada evento assume para cada pessoa.

Aquela tarde chuvosa e fria trouxe consigo tudo isso, que se não teve grande importância nos já passados 20 anos, a história agora para quem vos conta, veio rabiscada numa folha de papel porque, como uma cena já vivida, viveu-a nesse instante novamente, pois à minha frente, não esperando a canja, mas um cafezinho, está um casal, bem mais novo, mas que diz freqüentar a Santa Tereza há 10 anos e que foi aqui que se conheceram, hoje têm uma filha de 5 anos. E eu, 20 anos atrás, estava nessa padaria e pude presenciar algo que se não reproduziu a mesma cena, o leito do rio já não é o mesmo, teve a mesma beleza em sua simplicidade. Num pedido de café, numa canja que "demora a chegar", numa torta que o outro come saborosamente, naquele que declama um poema para os amigos no canto do salão, no magistrado que se mistura com os demais que o olham sem a deferência do cargo, porque o vêem como o que é, um ser humano. Ou, ainda, no garoto que pede para engraxar o sapato do advogado, que permite sem o olhar preconceituoso dos intransigentes.

É isso.

história publicada em 9/11/2007, No Sãopaulominhacidade.com.br