OLHOS CIGANOS
Fátima morava em uma casa pequena. Ao lado da sua casa havia um terreno grande com algumas árvores frutíferas, as águas de um córrego corriam no fundo das casas que ali existiam.
O bairro em que Fátima residia estava localizado na periferia. Ela vivia sozinha em sua casa. Trabalhava em uma escola pública no centro, era professora e ministrava aulas para crianças das séries iniciais. Seu maior desejo era ascender profissionalmente. Fizera alguns cursos capacitatórios, mas a sua timidez e sua consequente dificuldade de expor seus pensamentos não ajudará muito. Quando o assunto era relacionamento amoroso ela preferia desconversar. Fátima teve poucos namorados e seus relacionamentos não duravam muito.
Certa vez ao voltar para a casa chamou-lhe a atenção os ciganos que haviam chego e estavam acampados no terreno ao lado da sua casa. Mulheres falavam e gesticulavam sem parar umas com as outras, algumas crianças corriam para lá para cá. Eles eram barulhentos.
As vizinhas mexeriqueiras estavam em seus postos observando tudo que acontecia. Fátima fizera uma leitura rápida das expressões de tais vizinhas e nelas havia curiosidade, medo e na maioria intolerância com o diferente. O preconceito não havia sido jogado para debaixo do tapete, era um livro aberto para quem quisesse ler. Não havia vergonha em explicitá-los.
Fátima não era uma pessoa preconceituosa, ela não desejava ter problemas com os vizinhos. Entrou em silêncio. Não havia um muro que os separavam apenas um cerca baixa de arame farpado. A sala possuía duas janelas e um dava para o terreno em que estavam os ciganos, a porta da cozinha no fundo da casa também dava para o mesmo terreno que tinha a forma de um l maiúsculo de ponta cabeça. Fátima por um tempo teria que conviver com uma cultura diferente da sua.
As ciganas vieram lhe oferecer seus serviços: a quiromancia, mas Fátima esquivou-se.
Certos sentimentos estavam adormecidos nela e não havia mudado com a chegada dos ciganos pelo menos nos primeiros dias, mas depois de uma semana um cigano despertou-lhe a atenção. Hiago era seu nome, um cigano que deveria ter uns trinta e cinco anos, casado e pai de quatro crianças. O caçula era bebe. Ele era o cigano mais bonito daquele grupo: estatura mediana, músculos bem definidos, pele morena e os olhos mais negros que Fátima virá em toda a sua vida. Negros como as jabuticabas da Jabuticabeira que havia naquele terreno.
Ela sentava-se na varanda da frente depois do trabalho na tentativa de em seu íntimo desvendar a alma de Hiago. Ele despertará nela desejo, mas Fátima era tímida e não tola. Os ciganos preferem não se envolverem com as mulheres não ciganas e ele já tinha uma companheira, mas Hiago também estivera observando discretamente Fátima.
Aos poucos os ciganos começaram a se aproximar dela. Ela era a única pessoa acessível naquele lugar. Quando Hiago a olhava com aquele olhar inquisidor. Ela se sentia como uma pressa acuada, encolhendo mais profundamente em seu mundo. Essa sensação não era ruim, havia um tipo de prazer nisto. Fátima pensava várias vezes nele, gostava de estar perto dele e Hiago sabia o que ela queria. Eles conversaram algumas vezes sobre vários assuntos e a diferença entre os dois era grande ele não poderia dar a ela tudo o que ela desejava, mas uma parte sim.
O que deixava Fátima sem base era a maneira como Hiago a olhava. Seus olhos eram como punhais a penetrar-lhe o espírito. Ela não sabia como controlar seus pensamentos e coração, o grande desejo de possuí-lo e os valores que adquiriu em toda sua vida travavam uma batalha intensa dia e noite. Fátima estava enfeitiçada.
Hiago era vendedor de utensílios domésticos. Ele deixava o carro em determinada esquina e ia de casa em casa oferecer seus produtos. Cada dia estava em um bairro. Um dia Fátima viu-o perto da escola em que trabalhava e aproximou-se para cumprimentá-lo.
- Boa tarde, Hiago!
- Boa tarde, Fátima!
- Você está precisando de panelas? Ele perguntou.
Ela sorriu e disse:
- Você me ofereceu dias atrás.
- Você pode ter mudado de opinião.
-Não, obrigada.
- Bacias ou espelho? Ele insistiu.
- Está bom, vou comprar um espelho pequeno para por no banheiro.
Ele sorriu vitorioso. No caminho ele “puxou” conversa.
- O que você pretende fazer? Ele falou.
- Colocá-lo no banheiro no lugar do que quebrou.
- Eu estava me referindo aos seus sentimentos.
Fátima ficou pálida e suas mãos tremeram. Seus olhos fitaram rapidamente o rosto de Hiago e logo em seguida ela abaixou a cabeça. Ele era o Diabo a querer-lhe a alma.
Silêncio.
Chegaram e ela esperou na frente do carro ele ir buscar o espelho. Ele entregou o objeto e disse:
- É um presente.
- Eu faço questão de pagar, Hiago.
- Não insista. Sua expressão mudou. Seus olhos enigmáticos estavam fixos no rosto de Fátima.
- Eu escrevi algo para você e quero que você a leia quando chegar em casa. Ele retirou um papel dobrado do bolso da calça.
Ela pegou o papel e colocou dentro da sacola em que estava o espelho.
- Nós conversamos depois. Ele falou.
- Eu preciso ir. Disse Fátima.
Ele consentiu fazendo um movimento com a cabeça.
Em casa Fátima leu o bilhete. Nele estava escrito o seguinte:
“Logo partirei, por isso, não devemos mais adiar o que nós dois queremos. Não vou prometer coisas que não posso cumprir. Sou um homem casado e irei com a minha família aonde quer que ela vá, mas posso satisfazer a sua vontade, ou melhor, dizendo a nossa vontade, pois também quero estar contigo e prometo que você não irá se arrepender. Amanhã no fim da tarde vá até o endereço abaixo:
Rua: Das Rosas, 99 que fica no Bairro do Boticário.
Se você não aparecer irei considerar tal atitude como um não definitivo.
Não tenha medo, não a machucarei.
H.”
Fátima sentiu-se angustiada. O que fazer? Novamente a batalha entre o que é certo x errado se instalou em sua mente. Ela seguia certas regras de conduta, Hiago era casado, partiria em breve e o pior deixará claro que não era amor o que sentia. Valeria à pena?
Amanheceu e Fátima havia dormido pouco, mas tomará a sua decisão. Naquele dia levantou-se mais cedo da cama. A sensação de que o tempo caminharia lentamente como uma tartaruga a seguiria até o fim da tarde.
Ela iria sim. A sua consciência não parava de lhe apontar o dedo e repetir a expressão “Você é culpada”, mas isso não a fez mudar seus planos.
Naquele dia Hiago foi vender seus objetos com fazia desde que chegará aquela cidade e sua esposa com os dois filhos menores mais a cunhada foram para uma praça executar os seus trabalhos de leitura das mãos. A praça escolhida naquele dia era a Praça Papoula que estava localizada no Bairro do Boticário.
Fátima estava um pouco alheia várias sensações como: angustia, euforia se revezavam em sua mente. A sirene tocou e seu coração agitou-se, estava chegando o momento que ela desejará inúmeras vezes nas últimas semanas.
Ela olhou para o relógio e saiu apresada. Durante o percurso até a Rua Das Rosas pensou nos olhos de Hiago, aqueles olhos típico dos ciganos. Ela chegou ao local combinado e esperou.
Hiago deixara o carro na outra rua e foi a pé, sorriu ao pensar em Fátima.
A esposa dele viu-o parado na calçado do outro lado. Ele não a viu.
- Olha lá seu pai! Falou para o filho de cinco anos que sempre a acompanhava. Ao ver o pai este largou a mão de sua mãe e saiu correndo em direção ao pai.
- Pai! Gritou o menino ao atravessar a rua.
Hiago olhou para o menino e o que ele viu o seguiria por toda vida. Um motorista freou, mas não conseguiu evitar que o carro batesse no menino.
- Filho! Um grito agudo soou em meio à multidão. A mãe desesperada correu até a criança.
Algumas pessoas correram até o local em que estava o menino. Uma mulher ligou para os bombeiros, as ciganas estavam descontroladas, o bebe no colo da mãe com a gritaria assustou-se e não parava de chorar, o motorista dizia sem parar:
- Ele surgiu de repente, fiz o que pude. Foi um acidente.
Os bombeiros chegaram. Hiago segurava o corpo inerte do filho. Os bombeiros tentaram reanimá-lo. Um belo ato, mas em vão.
Dor, tristeza, lágrimas! Sentimentos que acompanham os que ficam.
As horas passaram e na Rua Das Rosas Fátima cansou de esperar e foi para casa. Estava decepcionada. Ao chegar a casa Fátima viu o vai e vem dos ciganos, mulheres chorando. Resolveu investigar o que estava acontecendo e o que descobriu lhe fez sentir-se muito mal.
Já em casa ela chorou. Não queria ficar ali no final da semana e resolveu ir para a casa da sua irmã.
Ao voltar no Domingo a noite viu Hiago encostado em uma árvore. Fátima aproximou-se timidamente e falou:
- Hiago eu não sei o que falar.
- Não diga nada. Nenhuma palavra diminuirá minha dor.
Fátima ficou em silêncio e viu que as chamas que havia nos olhos de Hiago haviam diminuído. Ele a encarou. O silêncio permaneceu e segundos tornaram-se horas. Ele falava com os olhos e Fátima entendeu que deveriam afastar-se, cada um seguiria o seu caminho.
- Eu vou entrar. Tchau. Ela falou com um sorriso desbotado, triste.
Ele viu ela se afastar cabisbaixa. Eles nada fizeram e não fariam, as coisas continuariam para ela da mesma maneira, não haveria nenhuma mudança radical. Em seu lar ela chorou novamente.
Uma semana depois eles partiram. Hiago muitas vezes durante a sua vida pensou “E se eu não estivesse ali indo para a Rua Das Rosas se encontrar com Fátima, talvez meu filho pudesse estar vivo”.