QUO VADIS ?
(Para onde vais?)
(Para onde vais?)
Ela fica comprimindo as pálpebras quando quer enxergar melhor alguma coisa. Pode estar com um probleminha de visão. Miopia, talvez.
A professora percebeu a anomalia desde a semana passada e comunicou à família: - "Importa levá-la a um especialista o quanto antes". . .
Consulta marcada.
A mamãe vive no vaivém de professora de dança. Assim - de repente -, não tem como levá-la ao oftalmologista da família no outro extremo da cidade, lá no entorno do Parque da Jaqueira. Delega a missão ao marido, engenheiro civil, que atua numa obra distante do seu bairro e cuja liberação depende muito dos cronogramas a cumprir.
Pelo sim, pelo não, deixe-se o avô de sobreaviso. Importante é que se constate, em tempo hábil, o suspeitoso problema visual daquela criaturinha de ainda quatro anos de vida.
Sexta-feira da semana seguinte.
O pai consegue utilizar uma folga, aproveitando também esse mesmo dia para uma revisão oftalmológica. O avô faz o mesmo.
Vão-se os três. Juju, a principal consulente.
Ela lembra que, nalguma vez que foi levada a uma clínica, injetaram-lhe uma intramuscular no bumbum. Teme que o sofrimento se repita. Em sua cabecinha, qualquer consulta médica significa uma sessão de sacrifícios. Por isso, reage.
O susto e os choramingos, ao sair de casa, se repetem no consultório, quando a atendente chama pelo seu nome:
Maria Júlia !
Ainda bem que o pai e o avô lhe dão coragem. Vai, sim, colada à mão dos dois, embora receosa.
Meio tranquila, meio temerosa, senta-se justo na cadeira mais próxima do "algoz" de sua antevisão.
Mas, ele parece adivinhar a razão de sua carinha assustada, porque cuida logo de examinar os dois adultos. Por certo, com a intenção de fazê-la alcançar a leveza dos seus métodos. Tudo bem. Nada a estranhar:
– “Esse monstro de branco até que não é um demônio!... Trabalha conversando com as pessoas, perguntando coisas. Mais parece um professor!...” – ela imagina.
Sentindo-se igual a qualquer outra criança de sua escola e de sua idade, começa a se divertir quando os dois grandalhões, tanto o papai quanto o vovô, não identificam algumas letrinhas apontadas pelo médico num quadro branco iluminado.
Reanima-a, a vontade de rir. A menininha que entrara triste e medrosa, vibra, descontraída, quando é chegada a sua vez:
- Vou mostrar-lhes que não perco uma ! . . . – pensa.
Porque é criança, não lhe é mostrado o mesmo quadro de antes, contendo as letras do alfabeto. No lugar, figurinhas de animais e vegetais. Frustração total, pra quem programava um belo espetáculo no momento da leitura. Fazer o quê? Submete-se.
– Acabou o exame, Juju. Tudo perfeito! – diz o médico, prazeroso pela missão cumprida.
Os três adultos, velhos amigos que há tempo não se viam, reúnem-se em torno da mesa numa animada conversa. Sabem que os demais consulentes, na sala de espera, têm outros compromissos inadiáveis. Todos correm, apesar da rapidez de seus carros. Mas, acreditam, um papo tão rapidinho não interferirá no atendimento.
A sapequinha, Juju, que não toma parte na conversa, gira a maçaneta da porta e escapa dali sem ser notada.
Na sala de espera – achando que é a atendente quem dá ordens ao médico –, faz-lhe um pedido inusitado:
- Quero que me chame pro médico de novo, e agora! – diz, debruçando-se na mesa e com o olhar fixo para a atendente.
– Meu exame não prestou. Eu só vim aqui porque preciso usar óculos...
Os que esperam ansiosos por sua vez na sala, riem do gesto imperativo e inocente da pequena cidadã, de cara amarrada, exigindo um seu direito.
A atendente, numa atitude maternal, diz-lhe sim. Toma-a no colo e a reconduz ao médico, informando-o da insatisfação da consulente – e logo no seu primeiro exame! . . .
Não se perdoando pela negligência, comum aos três, o pai pergunta à filhinha a razão de sua fuga e desse estranho pedido, de vez que ela já fora atendida.
- É porque quero mostrar para o médico que eu conheço mais aquelas letrinhas do que você e o vovô! – respondeu com segurança. – E, se eu acertar todas, sei que vou ganhar óculos. - Motivo de aplausos com uma estrepitosa gargalhada do grupo.
O médico abraça e beija sua mais nova consulente (ou aluna exigente). Elogia seu interesse em mostrar-se mais preparada do que os adultos numa imaginável prova de conhecimentos. Assenta-a na cadeira e procede ao novo exame.
– Pronto, Maria Júlia, até com as letrinhas sua visão continua perfeita! – assegura. – Agora, me diga, bem baixinho, por que você fica tanto tempo encolhendo (comprimindo) suas pálpebras? – Ao que ela responde:
– É porque eu quero usar óculos. Acho bonito. Minha prima, Sarah, usa. Ela me disse que, se eu quiser usar óculos, é só fazer assim (comprime as pálpebras), deixando os olhos bem miudinhos. Aí, a mãe se assusta, leva a gente no médico e ele manda comprar óculos...
– Pois, saiba, mocinha, que nunca vou deixar você usar óculos. Esses olhos verdes e bonitos precisam ser mostrados ao mundo, abertos, fulminantes, livres, sempre!... – Encerra, eufórico, o oftalmologista, enfatizando a beleza e a vaidade feminina. Beija-a, mais uma vez, com um até breve, sabendo-a conformada. Despedem-se.
Ainda no elevador, o pai e o avô resolvem fazer uma pequena surpresa a Juju.
Levam-na ao Parque da Jaqueira, a alguns passos dali, onde predomina o verde e se respira ar puro. E tem mais: do outro lado das pistas de passeio, ou de corridas, há uma ampla área de lazer para crianças.
Divertindo-se bem, nessa oportunidade, ela há de reverter, de uma vez por todas, a aversão por consultório médico, provocada pelas dores passadas de uma inoportuna intramuscular. É preciso tornar esse momento igualmente inesquecível.
Logo chegam ao parque. Juju pede pipoca, lambuza-se com sorvete e – por que não? – experimenta os balanços, escorregos e todos os brinquedos que encontra à sua frente. Farta-se. Sente-se feliz com o passeio inesperado.
Hora de voltar.
O sol já não brilha. O relógio aponta quase seis da noite. Tudo bem. Pelo menos, uma tarde sem corre-corres (para os adultos). Ela caminha com as mãos livres, e ainda corre, tirando proveito, até o último minuto, da liberdade que o parque oferece.
- Estamos indo para casa ! Viva a vida ! . . . – grita, despedindo-se.
Num dado momento, o pai a sustenta, firme e com os dois braços, a fim de atravessarem com segurança a pista de corridas, onde resfolegam suados atletas, homens e mulheres, de todos os corpos, de todas as raças, de todos os pesos, de variadas alturas, gorduras, finuras, belezas, feiuras . . .
– Precisamos tomar cuidado! – diz ele. – Aqui a gente tem que atravessar rapidamente, porque as pessoas só passam correndo ! . . .
Juju, depois de atravessar, observa, espantada, aquelas pessoas passando muito apressadas à sua frente – e, porque lhe vem enorme dúvida, tasca uma pergunta ao pai:
– Estão todos sempre assim, correndo, correndo ? . . .
– E pra onde é que eles vão ? ! . . .
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