Livre
Livre
(Renan Flores)
Vendo as coisas passando com velocidade através da janela do ônibus, Rubens pensava. Pensava em toda sua vida, desde as mais remotas lembranças da infância até as atitudes infantis tomadas nas últimas horas. Infantis, só se fosse para quem vê de fora. Por dentro, eram atitudes necessárias e desesperadas para lhe trazer certo conforto.
Vinte e um anos. Da última vez que parou para contar sua idade estava com quinze ou dezesseis, um rapazola que imaginava que a maioridade jamais chegaria.
Num piscar de olhos, cá estamos. A maioridade chegou, e com ela suas obrigações. Obrigação de arrumar um emprego, obrigação de se formar, obrigação de consolidar um punhado de amigos para irem comparando o passado com o presente, conforme forem envelhecendo.
“Ei Rubens, lembra de quando a gente tinha cabelo até a cintura e usava aquelas roupas pretas num calor de quarenta graus?”. “Ei Rubens, lembra daquela vez que a gente se perdeu e só foi chegar em casa três da manhã?”.
Vinte e um anos. Tantas alegrias, tantas tristezas. Tantas decepções, sonhos, paixões e lembranças naquela pequena cabeça daquele pequeno corpo de vinte e um anos. Às vezes essas coisas saíam de controle. Era como se, dentro de sua cabeça, Rubens tivesse uma represa. Vez ou outra essa represa rompia e ele era afogado num mar de lembranças e sentimentos passados.
Vinte e um anos. Toda sua vida passava diante seus olhos tão rápido quanto a paisagem pela janela do ônibus. Lá fora estava escuro, frio e deserto. Dentro de seu coração também.
Depois de muitos anos se torturando, finalmente resolveu seguir o caminho que sempre sonhou tomar. Exigia muito mais que disposição; era necessário força de vontade, coragem e frieza para segui-lo. Dado o primeiro passo não deveria voltar por nada.
Havia poucas pessoas no ônibus. Destino: não sabia. Tomou o ônibus mais caro que seu dinheiro podia pagar. Logicamente seria o que o levaria mais longe.
Embarcou às oito da manhã. Desde então o ônibus fez seis ou sete paradas. Desceu em todas. Queria acompanhar a mudança do ambiente e das rodoviárias conforme ia adentrando o interior do Brasil.
Aos poucos a paisagem de cidade grande foi dando lugar à vegetação. Grandes autoestradas de quatro e cinco vias, lisas como tapete. O motor mantinha velocidade constante, fazia um gostoso dia frio. Rubens se agasalhava com um sobretudo preto, mas deixava a janela aberta para sentir o vento frio contra seu rosto.
Sentia fome. Tirou de sua mochila um pedaço de bolo e comeu com gosto. Ao invés de jogar o lixo pela janela, guardou-o em sua mochila.
Logo as autoestradas deram lugar a estradas esburacadas e mais estreitas. A vegetação ficava mais presente. Grandes plantações de cana-de-açucar, laranjas, leguminosas e várias outras que não sabia identificar.
A partir da quarta parada, o ônibus passou mais e mais a trafegar em estradas de terra. Estavam cheias de lama, devido às chuvas do dia anterior. O veículo trafegava mais lentamente nessas partes, e Rubens aproveitava para sentir melhor o cheiro da terra.
Poucas coisas o agradavam tanto quanto o cheiro da terra molhada ou o barulho da chuva.
O sol havia se posto há algumas horas. A maioria dos passageiros já havia descido. Restavam apenas Rubens e uma senhora gorda, além do motorista. Os três estavam sentados juntos e conversavam para aliviar a monotonia da viagem.
A senhora se chamava Maria de Lourdes e estava indo visitar alguns parentes em Belo Horizonte. Desceria na próxima parada.
Contava cinqüenta e poucos anos. Tinha quatro filhos, todos já bem crescidos. Era natural de Belo Horizonte, mas veio morar com o marido em São Paulo, em busca de melhores condições. Maria de Lourdes, assim como muitos brasileiros, veio para São Paulo procurando uma vida melhor e só encontrou pobreza e péssimas condições de vida.
Ela e o esposo estavam esperando a filha caçula se mudar com o noivo para então voltarem para Belo Horizonte, onde a maior parte da família estava.
O motorista, como muitos outros motoristas, se chamava José. Magro e baixo, tinha um grande bigode que mais parecia uma taturana. Quarenta e cinco anos, trabalhara a vida inteira de motorista. Começou entregando gás, depois dirigiu lotação. Em seguida passou para ônibus público e, por fim, ônibus de viagem.
Era natural de Belo Horizonte também. Não tinha filhos e nem mulher. Era um pouco rude e grosso, mas conversador.
Maria de Lourdes perguntou se não se sentia sozinho, ainda mais dirigindo por um trajeto tão longo tantas vezes. Ele respondeu que algumas pessoas nasciam acostumadas à solidão. Rubens sentiu uma pontada de inveja.
Era uma da manhã. Maria de Lourdes dormia, José ouvia seu radinho de pilha. Estavam numa estrada asfaltada e deserta. Algumas poucas luzes lá longe pareciam ser algum tipo de habitação. Fazia mais de meia hora que não passava um único carro.
Rubens suspirou profundamente e se encheu de coragem. Colocou a mochila nas costas e caminhou em direção ao motorista. Pisou fazendo barulho, para que não o assustasse e o fizesse bater o ônibus (o que seria deveras irônico).
- Não estou me sentindo bem. Por favor, pare o ônibus.
- Está passando mal, garoto?
- Acho que vou vomitar, preciso respirar. Por favor, encoste um pouco.
O ônibus foi parando devagar e encostou. José ligou o pisca-alerta. Rubens desceu. Olhou em volta. Não havia nada. Apenas a estrada e duas grandes cercas, uma de cada lado. Respirou bem fundo, inspirando o aroma da terra. Mato molhado. Ali também chovera.
- Você está bem, garoto?
- Me sinto um pouco melhor. Mas eu esqueci meu remédio no banco, você poderia pegar pra mim?
José acendeu as luzes do ônibus e começou a procurar. Maria de Lourdes acordou e perguntou o que estava acontecendo.
Rubens olhou para trás e viu a silhueta do motorista desenhada nas cortinas. Olhou para frente, para além da cerca. Não havia nada. Só o escuro, frio e muito mato. Olhou mais uma vez para o ônibus. Tremia, lágrimas escorreram por seu rosto. Tinha medo.
Concentrou todas as forças do corpo em suas pernas. Começou dando pequenos e tímidos passos. Depois os alongou um pouco mais. Estava quase perto da cerca.
- Rubens! Onde você vai, menino?
A adrenalina explodiu e Rubens começou a correr, atravessou o arame da cerca e continuou a correr o mais depressa que podia.
- Rubens! Rubens! Seu José, corre aqui, rápido! Menino, volta aqui!
A estridente voz feminina ia ficando cada vez mais fraca conforme avançava. Continuou correndo. Seu corpo estava em chamas, seus olhos em lágrimas. Seu coração em retalhos.
Bateu aqui e ali, sua roupa rasgou contra os galhos de pequenas árvores no caminho. Chutou várias pedras, escorregou e tropeçou. Caiu de cara no chão. Seus óculos quebraram no meio, sentiu um líquido quente escorrer pelo nariz.
Levantou-se rápido e continuou a correr e a correr. Estava exausto, suava como um porco, respirava com muita dificuldade. Seu rosto ardia, seu nariz sangrava.
Por fim, começou a sentir câimbras insuportáveis nas coxas e se jogou no chão, sentindo a cabeça leve e quente. Seu corpo não estava acostumado a ser exigido assim. Pesava cento e tantos quilos e não tinha o costume de se exercitar.
Rubens desmaiou de cansaço.
Quando acordou, nada havia mudado. A grama continuava molhada, suas roupas rasgadas, a escuridão continuava pesada. Era difícil enxergar alguma coisa, não havia lua. E silêncio. Nenhum animal se arriscava a perturbar o sagrado daquele momento.
Sentou-se. Passou as mãos pelo corpo. Arranhou-se bastante correndo por entre as árvores. O sobretudo estava em frangalhos.
Colocou a mão nos dos bolsos, meio que por hábito, e encontrou seu celular. Abriu. Sete chamadas perdidas, todas de sua mãe. Uma mensagem. “Tá vindo pra casa?”. De sua mãe também.
Rubens fitou o celular como nunca. Aquelas quatro minúsculas palavras. “Tá vindo pra casa?”.
Começou a escrever uma resposta em sua mente. Escreveu várias. “Fugi de casa, vocês nunca mais vão me ver. Amo vocês. Adeus”. “Eu juro que tentei, mas isso é muito mais forte do que eu. Lutei bravamente, e perdi covardemente. Acaba aqui. Adeus”. “Mãe, eu te amo. Por favor, preciso de sua ajuda. Estou sozinho e machucado no meio do nada muito longe de casa. Nunca te contei isso, mas tem uma coisa ruim dentro de mim, que me machuca e machuca a todos com quem eu me relaciono. Preciso de sua ajuda! Não aguento mais isso dentro de mim! Por favor, mãe! Me ajuda! Não quero morrer! Quero viver! Quero voltar pra casa! Por favor! :’(”.
Sentiu vontade de chorar. Escreveu a resposta. “Desculpa não ter atendido. Estou numa festa e depois vou dormir na casa do Lucas. Beijos. :-)”. E então chorou, chorou e urrou como um recém-nascido, atirado injustamente no mundo.
Rubens não era um tipo comum de pessoa. Na verdade, era uma pessoa bem problemática. Ele tinha uma certa particularidade que o impedia de manter qualquer tipo de relacionamento com outras pessoas. Ele as machucava.
Não porque era mal ou porque sentia prazer em machucar outras pessoas. Simplesmente era o seu jeito de demonstrar sua afeição: machucando. Era o seu dom. Machucando as outras pessoas machucava a si mesmo, e nisso sim sentia prazer. Em destruir a si mesmo.
Outra particularidade de Rubens era seu fascínio pelo suicídio. Para ele não podia existir morte mais bela do que o suicídio, o ator de tirar a própria vida. Era seu grande plano de vida: cometer suicídio.
Não porque ele precisava de atenção (na verdade ele precisava, mas escondia isso), mas porque simplesmente precisava.
Não queria ser lembrado por amigos e parentes, não queria deixar nenhum tipo de marca no mundo. Não queria nem mesmo ser enterrado.
Mas tinha medo, muito medo. Medo de deixar tudo o que conheceu em sua vida pra trás. Medo de abandonar as pessoas importantes.
Fantasiava todos os dias com sua própria morte, mas não tinha coragem de levar a empresa adiante.
Portanto, começou um extenso e duro programa a fim de atingir esse objetivo.
Primeiro destruiu o futuro. Parou de acreditar em si, ou que seria importante na vida de alguém. Rubens possuía algumas habilidades de artista, como músico e contador de histórias. Era só o que sabia fazer. Decidiu parar de usar esses dons. Passou a autocriticar seus próprios trabalhos de forma destrutiva e impiedosa, de modo que nunca mais teve coragem de usá-los.
Em seguida foram os amigos. Arrumou pequenas briguinhas idiotas aqui, outras ali. Tudo era motivo de discussão.
No começo os amigos se preocuparam com a súbita mudança, pois Rubens era um sujeito amigável e pacífico. Mas os ataques de Rubens eram tão intensos e violentos que logo todos se irritaram profundamente e o deixaram sozinho. Os poucos que ainda resistiam ele se livrava de alguma forma.
Depois as obrigações. Parou de freqüentar a faculdade, largou o emprego. Deixou de cuidar da aparência e do corpo. Engordou muito em pouco tempo. Não fazia mais nada o dia inteiro a não ser ficar no computador, comer e dormir.
Dormia muito. Entre dez e treze horas por dia. Seu quarto era o único lugar em que ele se sentia protegido. Seus sonhos eram o único refúgio do castigo de viver dentro de seu corpo.
E então fez esse plano louco.
Roubou todo dinheiro que conseguiu encontrar em casa. Foi até uma conhecida e comprou cinco caixas do remédio mais forte que ela possuía. Foi em outro conhecido, um cabeleireiro, e comprou uma navalha de barbeiro que havia encomendado com o rapaz há alguns dias. Foi até a rodoviária de sua cidade e comprou a passagem de ônibus mais cara sem nem ao mesmo saber o destino do ônibus.
E por fim, chegou onde estava, no meio do nada. Não queria que seu corpo fosse encontrado, não queria sua mãe ou amigos chorando e velando seu corpo.
A essa hora, Rubens já tinha parado de chorar. Estava sério e pensativo, meditando eu diria.
De dentro de sua bolsa tirou os remédios, uma garrafa de água e a navalha. Era impossível algo dar errado.
Ao contrário do que imaginou, não estava mais com medo. Estava calmo e decidido. Encheu a boca de comprimidos e bebeu água. O remédio era um antipsicótico muito poderoso, tarja preta, vendido somente sob prescrição médica. Um único comprimido era o suficiente para deixar uma pessoa mole, e deveria ser tomado somente a cada vinte e quatro horas. Rubens tomou vinte e cinco em dois minutos. Resolveu esperar mais alguns minutos até começar a sentir o efeito. A dose que ele havia ingerido era muito alta, e em pouco tempo passou a sentir-se sonolento e leve. O próximo passo deveria ser tomado depressa.
Tirou o sobretudo e arregaçou a manga da camisa. Pegou a navalha. Estava bem afiada, como pediu ao rapaz da barbearia. Testou no sobretudo. Cortou com a facilidade de um açougueiro.
Hesitou um pouco. Essa com certeza seria a parte mais difícil. Olhou para o céu, absorveu o ar da terra. Fechou os olhos e passou a navalha no pulso.
Sentiu uma dor forte e aguda. A lâmina abriu um grande sulco na região, atingindo a artéria principal. O sangue esguichou com força, pintando tudo ao seu redor de vermelho escarlate.
Apesar do torpor causado pelos remédios, a dor era forte. Não teve forças e nem coragem o suficiente para cortar o outro pulso, como inicialmente planejara.
Apesar da sonolência, podia sentir o coração batendo cada vez mais rápido, tão rápido que às vezes doía. Era como se alguém tivesse enfiado finas agulhas através de seu peito e ficasse cutucando seu coração. Sentia dor ao respirar também.
O corte no pulso havia sido profundo. Doía muito, mal acreditou que teve coragem de ir tão longe. Mas valeu a pena. O sangue não parava de esguichar, como uma represa arrebentando. E junto o sangue levava todas as suas lembranças, as boas e as ruins. Principalmente as boas, que eram as que mais lhe machucavam.
Sentia o corpo extremamente leve. Parecia que seu corpo seria erguido ao menor indício de vento. E sono. Muito sono.
Deitou na grama e olhou para o céu. Não havia lua, nem estrelas, só as pesadas nuvens stratocumulus que logo evanesceriam em forma de chuva.
Rubens fechou os olhos. Estava muito silencioso e escuro, exatamente como em seu quarto. Não exatamente. Não tinha barulho de cachorro latindo, gato miando, carros passando. Era ainda melhor. E o cheiro da terra molhada, das plantas, do estrume de vaca. Definitivamente era um rapaz do interior, mas nascido e criado em cidade grande.
Se tivesse descoberto esse lugar antes talvez se mudasse pra lá. A questão é onde era lá? Não importava mais. Tudo era silêncio e preguiça. E sono, muito sono.
Sentiu cócegas, algo tocava seu rosto. Não se deu o trabalho de abrir os olhos, sabia perfeitamente o que era. Chuva. Gotas de chuva tocando gentilmente seu rosto. O céu chorava Rubens. Chorava não de tristeza, mas sim de alegria. A mesma alegria que ele sentia. O céu chorava Rubens e Rubens chorava o céu.
Já não sentia mais dor, nem gosto, nem dor, nem mais nada. Havia trocado todos os seus sentidos pelo sentido do sono. Nada passava por sua cabeça, somente o sono. Pouco ligava se alguém o encontrasse. Iria dormir pra sempre.
Rubens dormiu e nunca mais acordou.