Uma saudade que anda comigo

Uma saudade que anda comigo

“Vamos falar de saudade

que hoje eu estou pra chorar”

(Antonio Maria)

Hoje eu encarei a lua bem de frente, e vi que ela não mudou nada desde que a conheci. Continua linda e branca, embora eu a preferisse morena. Senti um grande desejo de dar as costas para o presente e, voltando: caminhar, caminhar, caminhar… quem sabe, encontrar-me criança em minha terra natal. De sentar-me à mesa com meus pais e meus irmãos, instante de ternura e intimidade, em que a fraternidade fluía cimentando a nossa união. Ouvir minha mãe, entoar as cantigas que encantaram a sua juventude, e que eu as ligava a acontecimentos reais.

Ouvir meus irmãos, com a eloquência congênita, declamarem as poesias de Castro Alves e Gonçalves Dias. Escutar meu pai lendo os sinais da natureza: “Vai chover!”, ou “Este ano vai ser de pouca chuva.” Deixar-me embalar pelas fantasias de criança no horizonte do meu pequeno mundo.

Olhar para as árvores que tinham nomes indefinidos: o pé de umbu de galhos espinhosos e copa enorme que iam até o chão. Ali eu me escondia, sentindo-me protegido dos meus medos de menino; o pé de pitomba, esguio, desengonçado, de frutos e safras pequenos; o pé de tambor, de tronco muito grosso e poucas folhas, inútil na minha visão de criança; o pé de caju, costumeiro abrigo dos pássaros. Gostava de ver a passarada com sua diversidade de cantos, sem jamais desafinar. Embora cada um tivesse a sua própria melodia, e cantassem ao mesmo tempo, os sons se harmonizavam em inimitável cadência musical. Um deles me chamava a atenção: quando ele cantava os outros escutavam. Parecia o solista daquela orquestra sem maestro. Era um canário. Nunca consegui vê-lo.

Lembro-me do riacho que eu contemplava demoradamente, não sabia a sua origem e muito menos o seu destino. Tinha a impressão de que já conhecia as suas águas, porém o nanico rio passava arrogante, indiferente, sem me dar atenção. Às vezes ele ensaiava um canto desafinado na pequena cachoeira, ou talvez fosse um brado de protesto pelo desnivelamento do seu leito. Contava-se que aquele quase regato trazia cobras, escorpiões, lagartos, vindos das capoeiras ciliares, mas eu não resistia e, flutuando, deixava-me levar pela correnteza tão passageira. Eu me quedava horas, contemplando esse elo de união e ao mesmo tempo de alegria para todos de suas margens. Quando me retirava, olhava muitas vezes para trás, esperando que o rio fizesse pelo menos um aceno.

Para mim, foi um desalento quando, no verão, vi o seu leito seco. E o que foi feito daquela água, revolta, presunçosa, desafiante, que se exibia ali, bem diante de mim? Contaram-me que lá na frente ela se encontrara com outro rio e, vadios, perambularam por outros leitos, até topar-se com um rio bem maior que os levou para o mar.

Fiquei triste em pensar que o mar gigante absorveria aquelas águas que me fizeram sonhar, e que eram tão minhas.

Muito tempo depois caminhei pela praia disposto a identificar naquele gigantismo as águas do meu pequeno rio. Quem sabe, elas ainda guardavam os meus sonhos, quem sabe, elas me reconheceriam. Inútil, o oceano de águas verdes sufocara o que ele trouxe do seu caminhar. É verdade que, no quebrar de uma onda, ouvi uma voz me chamando. Teria sido o último gemido do meu rio criança, massificado na imensidão daquelas águas?

E a serra de minha terra? Tão desajeitada. Nunca vi serra igual. Era um conjunto de morros disformes que compunham uma muralha em torno do meu pequeno espaço. Não envelhecia, ainda que sua cabeleira rarefeita ficasse grisalha nos dias de chuva. Nada me dizia aquela serra, mesmo me dando a impressão de que do seu outro lado morasse a alegria, a felicidade, o meu destino. Eu procurava dar nomes aos seus morros, que apesar de ligados pareciam-me tão desunidos, mas eles não me lembravam coisa alguma, de forma que sempre os conheci apenas como Serra de São Francisco.

Perto de minha casa havia uma pequena mata, muito pequena. Era cortada por uma estreita vereda, pouco transitada. A lenda popular falava em assombrações que apareciam nas árvores que ficavam bem na metade do caminho. Falava-se em almas penadas que à noite, pediam a quem passasse, para saldar promessas não cumpridas.

E nas noites de chuva? Os relâmpagos e trovões me assustavam. Eu tremia de medo. O clarão imenso me apavorava. Eu gritava e minha mãe, simplesmente chegava até o meu leito e punha a mão em minha cabeça. Eu adormecia tranquilo, ignorando o ribombar dos trovões que ecoavam no espaço.

Lembro-me das tertúlias no terreiro nas noites sem lua. Meu pai com postura professoral discursava sobre as estrelas que pareciam ficar mais próximas e familiares. As três Marias, tão juntinhas e todas Marias. As Sete Estrelas pareciam esconder-se para não ser olhadas. A constelação do Sino Salomão, cujas badaladas eu procurava atentamente, e, em vão, ouvir. O Cruzeiro do Sul, garboso, visto sem dificuldades, seria o sinal de que o próprio Deus traçara no cosmos, como sinete de sua autoria da criação. A estrela Dalva, guia dos caminheiros nas noites escuras. O pisca-pisca das outras estrelas lembrava os vaga-lumes que nos rodeavam.

Eu crescia naquele ambiente simples e de muitas fantasias. Aos pouco e pouco eu passava a perceber que os sentimentos apontavam para algo mais interior. Um quê me falava, que apesar de toda poesia que o espaço do meu pequeno mundo me oferecia, havia algo bem mais atraente, mais sedutor, convidando-me a tirar o véu que o ocultava. Meu imaginário, sem cessar, procurava descobrir o mistério que envolvia a época da minha puberdade. Comecei a sentir muito interesse pela presença feminina.

Na festa da padroeira, já adolescente, ao chegar à noite, assistia na igreja á novena. Entre o louvor a Deus e o interesse pelos rostos femininos, eu preferia percorrer todos os bancos até encontrar um olhar trigueiro que sonhasse na mesma direção. Afinal, o que queria dizer o sacerdote com os cantos e fraseados em latim? De qualquer forma ficou em minha lembrança a associação dos instantes sagrados com a busca de um romance juvenil.

Ah! Como eu queria sentar-me na calçada da Igreja e ver, pouco a pouco, a rua principal encher-se de gente, de alegria, de vozes, de expectativas, numa ânsia incontida, deixando-me sem entender o porquê daquele vai-e-vem irrequieto.

E quando a amplificadora, com seus alto-falantes espalhados pela cidade, lançasse ao ar as mais belas canções da época, eu curtiria o despertar dos sentimentos que a música motiva, vendo os jovens e as jovens tornarem-se mais agitados na procura de um grande, ou quem sabe, de um novo amor. Eu sentiria um desejo imenso de fazer parte daquela festa, de receber telegramas, mensagens, bilhetes de meninas que se esconderiam no anonimato.

Eu ofereceria músicas, com declarações apaixonadas, às jovens que desfilavam, e com satisfação, eu observava a ânsia delas em descobrir quem estaria por trás daquelas cativantes mensagens. Em troca receberia também a dedicatória de lindas melodias, convidando-me a aparecer. Depois, me apresentaria diante do desfile das mocinhas, ainda com jeito de meninas, ansiosas por uma aproximação, por ternura, por afeto. Flertaria com uma, duas, três, ou até com todas, sem compromisso e “sem vontade de casar”. Ah! Como eu ia me sentir feliz em ser notado, procurado, admirado, desejado.

Quando a rua se tornasse um pouco mais deserta e as fisionomias já não me trouxessem novidades, eu convidaria a jovem mais atraente e iríamos para um ponto discreto: parte de trás da Igreja, o muro do Grupo Escolar, a Rua de Baixo, mas de preferência debaixo os pés de fícus da Rua da Cadeia. Ali, abrigado da luminosidade e dos olhares, abraçava e seria abraçado, beijava com inexperiência, sentia o coração bater na frequência máxima, o sangue se agitar pelo corpo, o desejo, estimulado, se manifestaria em carícias. Deixaria que o tempo me conduzisse pelos caminhos do inesperado.

Somente o silêncio da noite iria trazer-me à realidade. As vozes, os sonhos já haviam se recolhido, sempre na expectativa de uma nova oportunidade. Eu afugentaria a saudade ameaçadora convidando alguns amigos e ao som do violão, do saxofone, do clarinete, percorreríamos todas as ruas, cantando as mais belas serestas.

A força da música despertaria as pessoas, e quase sonâmbulas iriam formando um cortejo que, engrossando aos poucos, se tornaria uma grande procissão de gente silenciosa, intimamente ligada pelas encantadoras canções. Que espetáculo! No sossego da noite, uma multidão experimentava seus sentimentos expressos na voz do cantor e nos sons dos instrumentos. Quando o sol mandasse o aviso de que iria aparecer, todos se recolheriam, e afagados pelas lembranças da serenata, adormeceriam.

Eu voaria para o meu antigo recanto, para minha casinha de onde eu avistava a Serra de São Francisco. Deitaria no terreiro, vendo o acenar das últimas estrelas. A passarada (não sei se a mesma do meu tempo de criança), no velho cajueiro, cantava as mesmas melodias. Já não ouvi o canário solista. Sentiria no rosto a umidade do orvalho. A brisa sussurraria no meu ouvido inconfidências de outros sonhos…

“Ah! se voltasse esse tempo

De poesia, sem dor de outrora.”

(Carmen Silva)

João Fragoso

Joca Fragoso
Enviado por Joca Fragoso em 12/02/2012
Reeditado em 23/05/2012
Código do texto: T3494750