Maus Bocados
I
Lembrava-se de quando conseguiu aquele emprego. Fora um sacrifício enorme frequentar o curso técnico à noite, depois da jornada como caixa de supermercado, mas ele conseguiu. Um amigo trabalhava em uma companhia de instalações telefônicas, havia feito o mesmo curso, ele levou currículo, fez entrevista; ainda levaram três meses para chamá-lo. Comprou uma garrafa de vinho para celebrar, o que representava uma exceção a sua costumeira parcimônia. No começo, descobriu que a realidade era um pouco diferente dos livros, mas em pouco tempo pegou o jeito do trabalho, e já podia liderar uma equipe para a instalação de serviços de telefonia e internet. Era muito competente, e também atencioso e educado, e começou a se destacar nas pesquisas de satisfação.
Ele nem acompanhou as notícias de crise imobiliária nos Estados Unidos, não entendia nada daquilo e no fundo não lhe importava: cria que bastava trabalhar duro e as coisas seguiriam melhorando. E melhoraram: tornou-se encarregado com apenas seis meses na empresa. A esposa ficava feliz ao ver a tralha de casa substituída por utensílios modernos, e os dois filhos com roupas novas. A quebra de instituições financeiras, seu socorro pelo governo, fusões, tudo era uma narrativa distante e sem sentido: seu salário era o dobro do que ganhava havia um ano, tudo tinha que estar bem. E estava, aparentemente: muita gente estava instalando internet em Leiria, a empresa crescia, os funcionários recebiam bônus. Ele comprou um carro, usado.
Islândia ainda lhe parecia distante o suficiente para que uma crise de títulos, seja lá o que isso fosse, afetasse a ele. Irlanda era só uma ilha sem importância no seu modo de ver, esperava ansioso pela seção de esportes. Com menos de um ano de contratado, chegou a supervisor; o salário permitia pagar o aluguel de uma casa melhor, mudaram-se. Mas os noticiários começaram a falar dos problemas de Portugal também, e da vizinha Espanha, que seriam parte de uma sigla: PIGS, acrônimo de países em dificuldades. O governo anunciava cortes no orçamento, todos temiam pelo futuro. Ele garantia à esposa, que já abandonara o ofício de consertar roupas, que tudo sairia bem.
Mas a demanda por seus serviços começou a minguar, a parcela do salário que dependia das metas desapareceu. As equipes diminuíam de tamanho, ele via entristecido seus técnicos ficando sem emprego: já se dizia que era cada vez mais difícil conseguir uma recolocação. Ele estava acuado, e reagia trabalhando em dobro, ficando até de noite; o ambiente era insuportável na empresa, a competição, acirrada. Conversou com a esposa, era melhor retomar os consertos, talvez até o mais velho... ela rechaçou veementemente a sugestão. Agora ela tinha que reconfortá-lo. A tensão teve efeito sobre sua saúde, mais de uma vez ele deixou de trabalhar por um colapso nervoso. Isso não influenciou sua demissão, que viria de qualquer forma com o enxugamento da empresa.
A crise era agora concreta para ele, e até passou a tentar entender o noticiário sobre a dívida da Grécia, em pouco tempo discutia o mercado de subprimes nas rodas que se formavam na praça. Obviamente o mais urgente era cuidar de casa, o seguro-desemprego ajudaria, mas por pouco tempo. Ironicamente, para o negócio da esposa a crise era uma vantagem: as pessoas passavam a reformar as roupas em vez de descartá-las, e isso ajudou um pouco. Ele procurou emprego: como técnico em telefonia primeiro, viu que ninguém estava contratando naqueles tempos; tentou como caixa de novo, a experiência ajudaria, pensou, não conseguiu nada. Quando os seis meses se passaram e ele ainda estava procurando emprego, qualquer emprego, sabia que de alguma forma tinha de suprir o auxílio governamental que se acabava: descobriu um bico numa central de alimentos. Carregar caixotes, ele que entendia da última tecnologia de cabeamento ótico, e isso quando era aproveitado: havia um sorteio.
Sua auto-estima estava esmagada, e a esposa precisou de fortaleza para assumir o comando de tudo. Ele foi à igreja, queria perguntar a Deus como podia que alguém se preparasse, trabalhasse com afinco, e se visse reduzido a nada por ação de sabe-se lá quem em outro país; se todo mundo trabalha e trabalha, onde acaba essa riqueza toda? Como pode haver crise? O padre conversou um pouco com ele, que acabou aceitando um prato da sopa que estava sendo servida. Outro com quem teve que conversar foi o psiquiatra, pouco depois, estava com quadro de depressão e nem o bico conseguia levar adiante.
II
A casa já ficara muito cara, e mudaram-se para uma menor que a anterior, o carro já tinha sido vendido, o que salvou alguns meses. Eles não tinham como pagar por psicoterapia ou mesmo medicação, e o tratamento dele foi o vinho, barato, que tomava todas as noites. Estava em um estado deplorável quando um ex-colega veio lhe visitar. Ele ficou muito feliz, propôs um brinde, conversou sobre episódios do tempo em que ajudavam pessoas a terem acesso à rede de computadores. Merecíamos medalhas, e no entanto... O outro também perdera o emprego, e vivia desde então de pequenos bicos, consertando defeitos banais em computadores de usuários que não sabiam nem o mais trivial. Com um sorriso no rosto, ele estendeu uma revista ao anfitrião; estava aberta em um artigo que falava sobre o Brasil, de sua economia aquecida, e especificamente, em um quadro que fez questão de apontar, sobre a carência de mão de obra especializada. O amigo, completamente ébrio, esticou-se no sofá, murmurou que não sabia, nem a Lisboa havia ido mais que uma vez, tinha esposa e filhos, mas ia pensar.
Ela o encorajou: qualquer coisa seria melhor que mofar em Leiria e tornar-se um alcoólatra, se não era tarde demais. Ele iria sozinho; depois de um ano, se tudo corresse bem, ela se juntaria a ele com os meninos. Enquanto isso, seguia consertando roupas, o que já fazia cada minuto que estava acordada. Ele pediu ajuda ao filho para pesquisar na internet empresas no Brasil que atuassem em sua área; preencheu algumas fichas e voltou a encontrar o amigo, que estava partindo sem absolutamente nada garantido, desejou-lhe boa sorte. Estava mais animado, e voltou a batalhar uns trocados carregando caixotes. Um dia recebeu uma mensagem, uma empresa precisava de alguém com o perfil dele; a passagem foi parcelada em dois anos, por sorte seu limite ainda não tinha sido reduzido, embarcou.
A viagem até o nordeste do Brasil foi rápida, um funcionário da empresa foi até buscá-lo no aeroporto e instalá-lo em um hotel confortável, ele mal acreditava. A entrevista foi no dia seguinte, correu tudo bem e ele foi contratado, como chão-de-fábrica, é verdade, mas com perspectiva de crescimento, dado seu currículo. Teve de aprender as peculiaridades de um outro país, de outra tecnologia, até mesmo da língua, que era quase a mesma, mas se saiu bem, seu conhecimento era respeitado dentre os colegas. Vivia em um quarto de pensão, de onde ligava para sua esposa e filhos; as coisas melhorando um pouco eles viriam. Mantinha entretanto o hábito do vinho, que lhe ocupava as noites quentes e solitárias. Conseguiu falar com o amigo, que estava em outro estado: estava empregado e já conhecera uma brasileira, com quem morava.
Alugou então a parte de cima de um pequeno sobrado, mas a liberdade não lhe fez bem: ficava até tarde bebendo e vendo televisão. Se estava fazendo algum dinheiro, e enviando uma parte para casa, a verdade era que a adaptação era difícil: o calor, as brincadeiras sobre sua nacionalidade e sobretudo a solidão o entristeciam, e o refúgio era vendido barato em qualquer supermercado. Chegou atrasado um dia, depois outro e mais alguns; um orientador da empresa conversou com ele, recomendou um tratamento. Ele pensou, não era alcoólatra, apenas... afinal, aceitou a ajuda: uma semana de desintoxicação e grupos de ajuda mútua. A esposa estava preocupada, mas ficou feliz, torcia pelo melhor.
Ele já estava há dois meses sem beber quando ligou e disse que preparassem suas coisas, o acumulado já podia pagar as três passagens; foi numa quarta feira. Na sexta, uns colegas insistiram para que saísse com eles, era um forró do melhor, ele não se arrependeria. Ele disse que não bebia mais, que não era apropriado, mas acabou cedendo. Estava entediado: não sabia dançar e não suportava aquela música; esteve o tempo todo em sua mesa, bebendo guaraná. Mas de repente uma moça que estivera dançando com um de seus colegas se sentou; ela achou curioso ele ser de outro país e disparou a perguntar todo tipo de coisa. Ele achou a moça divertida, e a conversa durou horas, ela tinha que recusar convites para dançar, ele havia muito tempo não se abria assim para ninguém. Ao fim da noite, trocaram telefones, e já no domingo ela fez uma visita.
Ele via sua solidão amenizada, mas se sentia culpado pensando na família; entretanto, a intimidade dos dois só crescia, sem falar que o sexo era ótimo. Passagens marcadas para dali a uma semana, ele disse a ela que estava acabado, mas ela se envolvera, fez uma cena. Ainda se encontraram na véspera da chegada da família dele, ele pediu que nunca o procurasse. A esposa, por todas aquelas ligações que ele recusava com uma expressão desdenhosa no rosto, entendeu o que estava acontecendo, mas fingiu não ver nada. Ele realmente subiu rápido na empresa, e em pouco tempo estavam todos morando melhor. A amante ficou com todas aquelas histórias de Portugal rodando em sua cabeça, quando perdeu as esperanças de recuperar seu português, comprou uma passagem e se estabeleceu em Leiria, parece que faz algum dinheiro consertando roupas. O casal ainda discute se voltarão ou não quando a crise passar, as crianças já se acostumaram...