As lágrimas do rei - Cem dias sem laços - Cap IV

Eram quatro da tarde quando chegaram ao outro trevo que Sabonete mencionara, na verdade ali havia uma trincheira sob a rodovia que possibilitava a pedestres e veículos atravessarem de um lado para o outro ou deixar a faixa para qualquer dos lados sem ter que cruzar as perigosas pistas. À direita da rodovia ficava o lado norte da cidade serrana. Bairros com nomes comuns, mas incomuns pela aparência de improviso. Ao sul estava, bem às margens, o terminal rodoviário, para além do qual, se podia avistar boa parte da cidade se desdobrando pelas montanhas distantes. O centro estava deveras próximo. Alberto não sabia se já estava mesmo com uma predisposição a achar tudo atraente naquele dia ou se já era o efeito das primeiras doses de cachaça.

As nuvens que ele avistara para o lado do poente estavam avançando rapidamente e o sol já havia se intimidado. Ao chegarem ele e Sabonete a uma área gramada próxima à desembocadura da passarela de pedestres, pararam. Sabonete puxou para o canteiro o carrinho, agora leve sem a carga que ele já havia desovado lá mesmo no Bairro Veredas. Os dois se sentaram na grama e ficaram a olhar o movimento. Alberto pensou em como é agradável não ter nenhum laço a se prender, não ter compromisso, não ter uma imagem nem um nome a zelar. Poderia ficar sentado ali indefinidamente. As pessoas que passavam nem os percebiam. Eles não eram nada. Nada representavam para ninguém.

Sentia-se de repente muito alegre. O fato é que estava gostando muito do que via. O que mais lhe chamou a atenção, porém foi o que ele só conseguia classificar como correição. Um ajuntamento tão grande de pessoas apressadas que mais parecia um formigueiro. Aconteceu num repente. De um momento para outro começou a chegar gente de todos os lados. Milhares de pessoas. E ônibus, muitos ônibus. Carros, motos, bicicletas e pedestres se misturavam num pandemônio infernal.

_ O que é que está acontecendo, Sabonete?

_ São os funcionários das fábricas. Na sexta elas encerram o expediente às quatro horas. Muitas dessas pessoas são das cidades vizinhas e só vem aqui para trabalhar. Todos estes ônibus estão aqui para conduzi-las de volta a seus locais de origem.

Alberto ficou um longo tempo olhando, de um modo especial as operárias. As operárias são fantásticas. Elas tem garra, tem gana. Completam “a força que falta para empurrar a máquina”, lutam ombro a ombro com os homens na linha de produção, administram o lar, educam os filhos, controlam os maridos e deixam-nos pensar que estão no comando. Elas fazem mil coisas ao mesmo tempo e ainda conseguem ser femininas. Vão ao salão, tingem os cabelos, manicuram as unhas, depilam-se, usam cremes hidratantes, se perfumam e ainda tem disposição para amarem seus maridos, nem sempre gentis, nem sempre asseados. Elas não tem idéia de sua força e sua coragem.

Mais uma vez sentiu aquela coisa a que teimava em não dar um nome, mas sabia tratar-se de saudade. Ângela devia estar em um hotel modesto em alguma cidade da Europa, linda, cheirosa e... santa, como sempre.

_ Me deixa te dar um conselho. Disse Sabonete. A dois quarteirões abaixo da rodoviária tem uma instituição chamada Centro de Acolhimento. Lá se você quiser, poderá tomar um banho, eles te darão roupa e calçados limpos e uma passagem até a próxima cidade. Aceite a ajuda. Você está precisando.

_ Você não vai?

_ Está louco? Banho prejudica meus negócios.

Os dois riram muito. Alberto percebeu que havia muito tempo não conseguia dar uma risada verdadeira como aquela, e que a risada do amigo também era genuína, autêntica.

_ O que vai fazer?

_ Daqui a menos de um quilômetro há uma intercessão na rodovia e dois postos de gasolina, um de cada lado. Vou pernoitar ali. Amanhã vou seguir viagem até o Rio Pará. Vou passar o domingo pescando. Tenho os apetrechos no carrinho.

_ Talvez não nos encontremos mais!

_ Pode ser que não. Pode ser que sim. Deus é quem sabe.

_ Alberto olhou-o com simpatia.

_ Acredita mesmo em Deus?

Sabonete tirou o boné e inclinou a cabeça num gesto automático, a calva lustrosa rebrilhou molhada de suor. Sua atitude dispensava qualquer profissão de fé, mas ele disse com segurança.

_ Sim, eu creio!

Repôs o boné. E como na seqüência de um rito, serviu duas doses de cachaça.

_ Pode ser nossa última dose. _ Profetizou entregando um copo ao companheiro. Sei que você não é do trecho. Acho que vai encontrar o que procura, então sossegará o espírito.

Sorveu a bebida de um só gole, ergueu-se e sem mais nada dizer pos-se a empurrar o carrinho rumo à rodovia. Alberto também se levantou e foi seguir o conselho do amigo.

O Centro de Acolhimento dispunha de uma sala de recepção, uma pequena capela, um almoxarifado, um banheiro e uma área de serviço onde o peregrino pudesse lavar suas roupas caso quisesse. Era uma instituição católica a julgar pelos quadros com mensagens cristãs. Na parede por detrás da mesa onde o atendente se sentou para fazer o seu cadastro, havia o quadro com o retrato de um homem cuja aparência, barba, corte de cabelo e o trajo muito elegante, mas antiquado, lembravam um francês do século XIX. O funcionário o tratou com uma cordialidade reservada. Conforme Sabonete lhe dissera, arranjou-lhe roupas limpas, uma toalha e o mais que necessitasse para o banho. Ele demorou-se debaixo da água quente. Era muito bom lavar novamente os cabelos com xampu e ensaboar todo o corpo. Secou-se meticulosamente, sem pressa. Tanto a toalha como a roupa estavam muito limpas e cheirando a amaciante. Uma calça jeans azul já descorada pelo uso de seu antigo dono, mas ainda em bom estado, que a despeito de sua grande estatura caiu-lhe bem, a camisa era social, vermelho-escuro com aparência de nova e parecia ter sido talhada para ele. Enquanto se penteava contemplou-se no espelho, os cabelos estavam crescidos e a ação do sol havia acentuado ainda mais sua cor ruiva, a barba muito cheia num tom um pouco mais escuro do que os cabelos o fez lembrar o francês do retrato, nunca vira suas próprias barbas tão crescidas...

_ Saul.

_ Saul por quê?

Estavam deitados ainda, na manhã seguinte ao casamento. Sabiam que lá fora o dia estava lindo. Quando ficavam em silêncio podiam ouvir o barulho do mar, mas... o quarto ainda tinha o cheiro do amor. Alberto não pensava que agüentaria por tão longa espera. No jogo do amor, Ângela foi a única mulher que conseguiu dar as cartas.

_ Quando você se levantou de sua mesa naquela noite e caminhou na direção do palco, de onde eu não havia ainda saído, vi um hebreu impávido, ungido por Deus para governar uma nação: “os outros lhe chegavam apenas até os ombros.” Só faltava-lhe a barba. Naquele instante eu te elegi meu rei.

_ Por que então foi tão dura comigo?

_ Quem te disse que as coisas foram fáceis para Saul?

_ Oh, querida! Agora não falta nem mais a barba. Será que ainda me considera seu rei?

O homem gigante do espelho, com ares de majestade, de cabelos ruivos e pele tostada de sol, tinha uns olhos verdes que pela primeira vez em muitos anos, estavam cheios de lágrimas.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 11/02/2012
Reeditado em 28/02/2012
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