O Espírito
Era um condomínio de luxo, um pouco afastado de determinada metrópole. Um dispositivo no automóvel, um utilitário-esporte, emitia um sinal que fez abrir automaticamente a cancela. Aristide já havia afrouxado o nó da gravata e aberto o primeiro botão da camisa. Sua posição e a peculiaridade do ramo o forçavam a trabalhar na véspera de Natal.
Na cozinha, Angélica comandava uma equipe de três assistentes que deviam preparar cada detalhe para uma noite magnífica: era quem mais dava importância ao Natal. Um pernil estava sendo levado ao forno, mais tarde um tradicional peru também seria assado e ambos seriam ricamente adornados e guarnecidos de arroz com passas, batatas gratinadas, farofa, salpicão, uma exuberante salada, além de castanhas das mais diversas, importadas.
Na sala, uma árvore enorme, ou uma armação metálica coberta de plástico verde e apinhada de bolas vermelhas e douradas, estava cercada de embrulhos de diversos tamanhos. Um Papai Noel de pelúcia comandava um trenó puxado por renas do mesmo material. Felícia, a do meio, assistia à televisão tomando sorvete, sentada no sofá de couro branco. Era uma linda jovem com duas décadas de uma vida confortável. Estendida sobre o tapete persa, de bruços, Amália, a mais nova, conversava em seu notebook com uma amiga. Iniciava a adolescência.
Em um dos quartos, um rapaz de cabelos escuros, compridos, usando camiseta preta com estampa de banda de heavy metal e jeans, sentava diante do computador. Na tela, magos e guerreiros enfrentavam bestas e malfeitores. Hugo fez uma pausa e verificou se havia alguma mensagem. A angústia e a expectativa iam se fazendo raiva e despeito. Ele já detestava desde sempre o Natal, e naquele em específico estava frustrado pelo relacionamento que imaginava estar tendo, e se desenvolvia bem na internet, mas que terminou antes de se concretizar na vida real. A última tentativa de salvá-lo sequer teve resposta.
Era o mais velho, estava terminando a faculdade de publicidade, era magro e razoavelmente alto, tocava guitarra numa banda, o nariz só um pouco grande demais; dava um bocado de trabalho aos pais, que tinham medo do meio musical e suas drogas. E detestava Natal. Não por isso deixou de pegar algumas castanhas quando foi beber água, sob protestos da mãe, que queria que se esperasse a noite para saborear o grande momento mais intensamente.
Foi quando Aristide entrou em casa. Amália se ergueu para receber um beijo na testa, Felícia desligou a tevê e o abraçou: era afetuosa. Foi até a piscina, onde Angélica tirava uma pausa dos preparativos para fumar. Cruzou com Hugo, que esboçou um "oi, pai" burocrático, antes de voltar a se enfurnar no quarto mais uma vez. O casal se beijou e passou a compartilhar seja os detalhes da festa ou as atribulações do trabalho. Ele tomou banho e vestiu algo mais confortável, abriu uma cerveja. Felícia ligou para uma amiga, que morava ali no mesmo condomínio, e anunciou à mãe: "vou na casa da Manuela depois da meia noite". Amália seguia na internet, Hugo jogava e Aristide lia. Às sete horas, Angélica saiu para levar cada empregada a sua casa, no sedã, cujo porta-malas estava repleto de cestas de Natal e brinquedos. Todos se prepararam, vestiram-se para a noite festiva, Hugo meio a contragosto: queriam que ele ficasse como um playboy. Quando a matriarca chegou e iniciou sua elaborada toalete, já começou a tocar o repertório de músicas natalinas (que davam nos nervos do primogênito).
Começaram então os telefonemas a parentes que moravam longe, os mesmos votos previsíveis. A aparelhagem de som deu lugar à tevê, com a ainda mais previsível programação natalina. Angélica teve que admoestar Hugo, que usava fones de ouvido. Amália e Felícia tiveram que levar o tabuleiro de xadrez da mesa de jantar para a mesa de centro, e interromper a partida para ajudar a mãe a trazer as iguarias, algumas das quais estavam sendo esquentadas no forno. A Hugo coube pôr os pratos e talheres, mas seu desleixo lhe valeu outra bronca. Aristide bebia um uísque devagar, saboreava o momento em família.
Angélica fez um discurso, repleto de uma religiosidade difusa, em que agradecia a Deus pela prosperidade material, mas principalmente pela saúde de todos. Quando falou em espírito do natal, Hugo fez uma careta. Ele não só era ateu e achava a história de Cristo mera invencionice, como detestava o consumismo vazio que caracterizava a festa - muito embora estivesse se preparando para vender coisas e ideias. Comeram. Comentários elogiosos e refrigerantes circularam, bem como futricas sobre a vida dos parentes que acabavam de descobrir.
O roqueiro, mesmo que a mãe fumasse tambem, sempre se escondia para dar suas tragadas, e foi até a garagem para isso, levando uma xícara de café. O casal sentava lado a lado, de mãos dadas, à beira da piscina, e a música natalina retornara. Felícia atendeu o telefone e deu um sorriso maroto. Amália voltou ao computador portátil. Faltava pouco para meia-noite: o grande momento para a mãe e um ritual insuportável para o filho, que foi o único a não jurntar-se ao coro que fez a contagem regressiva. Aristide abriu a garrafa de champanhe fazendo barulho e sujeira; serviu cinco taças, brindaram. Presentes foram abertos, e ele naquele desânimo: deviam saber que eu detesto camisa polo.
Foi quando Felícia chamou seu irmão de lado, e disse que sua amiga Manuela tinha pedido para chamá-lo para também ir a sua casa, que ficava a pouco mais de um quilômetro dali. Ele fez um muchocho e disse que achava aquilo um saco: iriam ficar fofocando e conversando sobre cosméticos. A irmã insistiu, disse que ele ia gostar; como ele não mudasse de ideia, teve que abrir o jogo: tinha alguém que queria conhecê-lo. Ele disse que ia pelo menos trocar de roupa, ela achou que fazia sentido.
Pegaram o carro da mãe emprestado. Não havia a menor necessidade, porque era perto e muito seguro, mas estavam desde sempre mal acostumados. Manuela tinha já por tradição chamar várias amigas para uma noite natalina de jogos de tabuleiro, mas naquela em especial só vieram mesmo Felícia, com o recalcitrante irmão, e seu namorado, que inclusive morava na mesma rua de Hugo. Havia ainda uma moça, que parecia ser a mais velha da assistência, que Hugo nunca vira. Tinha cabelos castanhos ondulados e olhos bem pretos, vestia um vestido um tanto mais despojado que o resto das meninas, e abriu um sorriso quando o viu. Tinha às mãos um livro do Calvin e Haroldo, do qual ele também gostava, de modo que foi instintivo comentar. Ela tinha ganhado do irmão. Daí a conversa começou a se desenvolver naturalmente. A irmã percebeu e veio ajudar: "essa é a Orquídea, ela é irmã do Flávio e mora na Espanha". Flávio era o namorado de Manuela, de modo que Hugo observou: "então é minha vizinha!". "De certa forma, sim".
A noite transcorreu plena de alegria, e Hugo já perdera a rabugice natalina costumeira. Conversou bastante com Orquídea, elogiou-lhe o nome inusitado, "Rosa não é comum, ora?" Ela disse que o ouvira tocar guitarra uma vez, que tocava bem, e que o viu passando de carro. Ele entendeu tudo definitivamente. "Não é Bob Dylan que está tocando?", e ela: "sim, é aquele disco de canções natalinas". Jogando, ela - à sua frente - fez-lhe um sinal com os olhos na direção de Manuela, ao lado dos dois, e passaram então a atacá-la de modo concertado, tirando-a do jogo; trocavam risinhos cúmplices.
À medida em que ficava tarde, a mãe de Flávio veio buscá-lo, e Angélica ligou no celular de Felícia. Hugo e Orquídea haviam acabado de abrir um vinho, e anunciaram que iriam depois. Risinhos circularam obviamente, e os dois não ligaram, já que tão logo a irmã saísse Hugo beijou a vizinha. Mais uma vez, as carícias se desenvolveram muito espontaneamente. Os pais da Manuela já tinham ido dormir e ela mesma usava o computador, feliz até com o papel de alcoviteira.
Voltavam andando, de mãos dadas, trocavam sorrisos francos e discutiam música e cinema. A dada altura havia um jardim, e uma sebe que circunscrevia um espaço invisível desde fora. Não que fizesse diferença, pois àquela hora o máximo que circulava era o carro da empresa de segurança privada. Orquídea estancou: "eu não te dei um presente". Puxou-o para de trás da sebe e aí então foi que as carícias foram num crescendo, até que, desabando fnalmente, exausto, com as costas sobre a relva úmida, ele mirava o corpo esguio dela, que, deitada de lado, passeava com a mão sobre todo seu corpo. "Feliz Natal", ela disse, beijando-lhe a face. "E um próspero ano novo", ele completou.