Em Busca da Memória Perdida

Abri os olhos. Plantas. Plantas? Um jardim, uma piscina. Nunca vi este lugar. Boca seca, ressaca; merda, que que eu fiz ontem? Olhei o céu, estava amanhecendo, fazia um pouco de frio. Eu ainda tinha muito sono, mas ali não conseguiria dormir de novo. Levantei cambaleando e achei um canto, imundo, ao lado da churrasqueira, que ainda emanava algum calor.

Acordei mais uma vez, igualmente atônito, estava quente e a claridade era insuportável. Fiquei estirado sobre as costas, esfregando os olhos, precisava recompor até onde pudesse a noite anterior. De repente veio o estalo: nós fomos ao show do Planeta Bizarro no Caçapa do Fundo. Já é alguma coisa. Mas onde diabos vim parar? E que terei aprontado no caminho?

Eu precisava de água, criei coragem para me erguer, e tentei limpar um pouco a camiseta branca, debalde. Uma porta de correr levava a uma sala, havia uma bateria montada. Ninguém por perto, eu não sabia se anunciava minha presença ou se torcia para estar sozinho (desde que não estivesse trancado). Abri uma porta que dava para uma copa e uma cozinha: uma família almoçava e me encarou surpresa, a matriarca deixou cair o garfo: a única coisa que quebrou o silêncio. Eu não sabia como me explicar, então só pedi água. Eles se entreolharam, o pai se levantou: a festa estava boa? Eu queria saber dizer, não disse nada, envergonhado. O filho passou por mim, e em alguns instantes retornou com uma moça de aspecto sonolento.

Nossa, você ainda está aqui! Bem, acho que isso é tudo que eu sei. Você estava muito louco ontem, não se lembra de nada, né? Não muito. Ela me puxou para a sala para que a família prosseguisse com a refeição. Sabe meu nome? Fiz que não com a cabeça. É Helena. Você chegou com o Mauro e o Flanela, já eram quase duas. E eu aprontei alguma? Não... você tocou com o pessoal, aí eu vi você conversando com a Fernanda, ela estava com o seu chapéu e você virou o copo dela duas vezes, depois... eu não te vi mais, não aconteceu nada. Puxa, desculpa, Helena, mas onde é que eu estou? Ela riu, aqui é Laranjeiras. Nunca ouvi falar. É passando a Cidade Nova, é um pouco longe, você veio de carona? Vim, vou ligar pro Flanela... Desculpa, eu não posso te levar agora. Não, não se preocupe. E também é ruim de ônibus, táxi sai uma fortuna.

Pedi mais água, tentei o número do Flanela, caixa postal. Liguei pro Mauro. Fala Maluco! Meu, que que aconteceu ontem? Putz, você estava muito louco. Já é a segunda pessoa a me dizer isso, eu fiz alguma besteira? Nenhuma muito... teve uns lances engraçados. Escuta, você está ocupado? Pode me buscar aqui? Aqui onde? Na festa, onde foi a festa. Você está aí? E riu-se com gosto. Estou, puta situação estranha, dá pra vir? Cara, meu pai tá usando o carro agora, posso ir mais tarde. Você sabe do Flanela? Eu liguei há pouco na casa dele e ele estava dormindo. Qual é o fixo dele? Pedi papel e caneta a Helena. Valeu, Mauro, qualquer coisa eu volto a ligar.

Não quer almoçar... como é que você se chama? Gabriel. Senta aí, come um peixinho. Poxa, eu... Vou fazer mais um telefonema, mas eu aceito sim. Precisei fazer um esforço para lembrar o nome verdadeiro do Flanela, mas a família dele já estava acostumada com o apelido. Pedi para acordá-lo. Porra, Gabo, deixa eu dormir. Cara, eu tô na roubada aqui, na festa. Na festa? É, eu dormi no jardim e vocês me deixaram aqui, seu puto. Eu achei que você tinha ido com a mina. Vem me buscar, quebra essa. Ele demorou um pouco para dizer que viria. O tempo que ele demorou para chegar foi justamente o que eu levei para almoçar, o pai da Helena me fez companhia, um cara simpático. Ela, ao se despedir, sugeriu que voltasse um dia para ouvir uns LP's. Que garota interessante, e eu nem me lembrava dela.

Entramos no carro, eu recusei um cigarro: nem pensar. Meu, você estava muito doido ontem. Já é a terceira pessoa que me diz isso, que foi que eu fiz afinal? Bom, você não se lembra de nada? Me lembro quando o show do Planeta acabou, eu já estava bem chapado. Pois é, essa hora você já estava fazendo gracinha com mulher acompanhada, a gente te salvou de tomar umas porradas; não conseguia digitar a senha... Ah é, essa eu lembro. Então, não lembra que a gente passou no Super Cesta, comprou cerveja, você comprou um vinho caro... Putz. Aí passamos no Mauro pra fumar um... É claro. Você quebrou um porta-retrato. Merda. Aí o baixista da banda dele ligou, falando dessa festa, que ia rolar um jam e tal. A gente rodou um bocado até achar o endereço, chegou. A dona da casa era essa gatinha, atriz... Eu conheci hoje. Pois é, aí você abriu o vinho, mas andava por aí com a garrafa numa mão e uma latinha na outra. Caralho... Estavam tocando violão na cozinha, você tocou uns Beatles, errando os acordes... Depois, na sala, jogaram as baquetas na sua mão e você tocou, até que mais ou menos, um blues. Pelo menos isso. A próxima vez que eu soube de você, você tinha pulado na piscina só de cueca. Ai, caramba! A Helena veio dizer que o cloro isso ou aquilo, pediu que saísse e você se vestiu. Daí em diante eu fiquei de olho em você.

Cara, para nesse posto pra comprar água. Bem, aí a gente estava sentado lá fora, apareceu essa mina que devia estar mais louca que você, pegou seu chapéu e pôs nela, disse que você era o Saulo, irmão do André, e repetia isso toda hora. E eu? Você disse que, se ela queria, era. Aí você tentou dar um beijo nela, ela virou a cara e disse que você era casado e tinha filho, você perguntou se dava tempo de ser você de novo, ela disse que você procurasse outra mulher, você disse que essa era a tônica da sua vida, ela mandou você se foder, você disse de novo que era a tônica da sua vida, e mais umas duas vezes, a tudo que ela dizia. Você pegou o copo dela, acho que era vodka, e virou, ela foi lá dentro, voltou com outro e você tomou dela e virou de novo. É, essa parte eu já sei. Aí você agarrou ela, deu-lhe um beijo, virou pro lado e vomitou. Estávamos na fila do caixa, a mulher da frente se virou e olhou feio. Aí foi ela que te deu um beijo. Que nojo! Nessa hora eu entrei, vocês que se entendessem, mas pedi pro Mauro ficar atento.

De repente ele me chama pra ver uma coisa. Lá vem. Vem mesmo: vocês se esconderam atrás de uma árvore, ou tentaram se esconder, você já estava com a calça abaixada, dela só se via a cabeça, na altura da sua virilha... Hehe. Mas alguém mais viu? Uma hora a Helena veio conferir uma carne que tinham esquecido na churrasqueira, não teve como evitar. Puta merda, Flanela. Ela levou na boa, ou fingiu bem, pelo menos. E como é que vocês me deixaram lá, afinal? Bom, você tinha cochilado em uma cadeira, eu fiquei mais tranquilo e voltei pra tocar com a galera, quando o Mauro disse que não aguentava mais, a gente te procurou em todo canto, não achou; como o pessoal que estava com a mina já tinha ido embora, imaginamos que você tinha ido com ela, apesar de que não ia aguentar muita coisa. Onde diabos você se meteu? Ah, eu estava no meio de umas plantas, no fundo do jardim. Estávamos chegando a minha casa.

Cara, eu preciso falar com a Helena e me desculpar. Esquece, meu, todo mundo faz isso uma vez ou outra. Você não tem o telefone dela? Não, eu conheci ela ontem também. Talvez o Mauro. Taí, descansa um pouco, toma um banho, tenta se segurar na próxima. Poxa, muito obrigado, Flanela, você foi firmeza mesmo. Tomei um banho e liguei pro Mauro. Ele não tinha o número, mas o baixista dele devia ter; liguei para o cara, constrangido, eu mal o conhecia. Pois é, eu sei, meti o pé na jaca mesmo. Eu queria pedir desculpas à Helena, você tem o telefone dela? Anotei e liguei na mesma hora. Helena, é o Gabriel. Olha, eu descobri que fiz coisas horríveis na sua casa, queria me desculpar. Mesmo assim, eu fico com a cara no chão, eu não costumo fazer isso. Pois é. Você acha? Eu passei um tempo parado, mas tenho praticado ultimamente. Foi bom voltar a tocar com banda. Mas, me diz, você também gosta de vinil? Conversamos? É, teríamos que conversar tudo novo, mesmo. Bem, foi um prazer conhecer você. Exatamente, duas vezes. Eu te ligo qualquer dia. Beijo, tchau.