PARA SEMPRE SEREI MAR
Naquele dia eu acordei por acordar.
Levantei-me da cama, coloquei meus chinelos e fui até o banheiro, joguei água no rosto. Dei uma última olhada para o interior do quarto, ele ainda estava na cama, nem percebera a minha ausência. Aliás, há dias que ele me tratava com tamanha indiferença, que, se eu estivesse ali ou não, nem se importaria. Já não me preocupava mais com isso, pois era o meu dia, a minha chance. Eu ia finalmente escapar daquele vazio, me libertar, dizer a todos o quanto eu era corajosa. Já tinha tomado a minha decisão, há semanas, e nada, nem ninguém, iria me fazer voltar atrás.
A minha roupa já estava separada. Meu melhor vestido azul até os joelhos, nem muito justo nem muito largo, de costas nuas... Tão confortável. E o meu laço, que usava na infância, lindo, minha avó que havia feito, cheio de violetas bordadas uma a uma na fita branca.
Olhei-me no espelho, eu estava linda. Queria que minha avó pudesse me ver... Ia sentir-se orgulhosa, logo ficaria corada, sempre ficava assim. As maçãs do rosto e o nariz dela sempre coravam quando estava feliz. Ele não. Diria logo que eu estava ridícula com aquele laço nos cabelos. Acho que o tempo foi implacável para nós. Eu o odiava e o amava. Talvez se tivéssemos tido filhos. Talvez tivesse sido bem diferente.
Antes de sair entrei no quarto novamente. Dormia pesado, tinha cheiro forte de homem. Lindo em sua rudeza, como sempre. Ainda lembro-me do nosso primeiro encontro, da magia, do encanto, da ternura. Era tudo o que eu imaginava para meu amado. Forte, belo, rude, porém delicado, selvagem, porém romântico, tudo na medida certa. Era desejo e amor. Meu Deus, onde foi parar tudo isso?
Meus dedos encontraram sua face mais uma vez, no fundo era bom homem. Acho que na verdade não poderia nunca negar a minha parcela de culpa.
Ganhei a estrada de barro, ainda era muito cedo, havia uma brisa fria que parecia tocar até o fundo de minha alma. Ao longe ouvia o barulho do mar, as ondas brigando com as areias, aquela eterna disputa que ninava o meu sono todas as noites. Meu vestido esvoaçava ao vento, leve como se não existisse, me sentia tão livre! Não havia ninguém para testemunhar a minha partida. Muito menos eu possuía a certeza de que seria encontrada. Talvez ninguém jamais descobrisse a verdade do que havia acontecido naquela manhã de domingo. Seria um segredo só meu?
Desci o barranco e ganhei as areias da praia, larguei os chinelos. Queria sentir o toque da terra, meus pés afundavam na areia ainda molhada do sereno. Não tinha certeza das horas, mas era muito cedo. De um lado a outro, não havia ninguém, apenas eu e o mar, o mar e as areias, as areias e o céu.
As águas vieram e tocaram meus pés. Não havia mais tempo, ele me aceitara. Era o sinal: o seu beijo era frio e poderoso. Imponente, até. Naquele instante eu estava aceitando me tornar maresia, ou brisa marinha ou espuma das ondas. Seria viva e livre para sempre, poderia ser tocada em todos os lugares por quem alcançasse as águas. Afinal, o mar emenda o mundo.
Caminhei em direção às águas, ele me abraçava pouco a pouco, ia se abrindo, a brisa era carícia em meu rosto, o feroz me devorava com delicadeza. Até que as águas tocaram meus seios e beijaram minha face. Fechei meus olhos e meus pés não mais alcançaram nada de concreto, estava envolta em seus braços, suspensa na imensidão. O silêncio era total, não conseguia pensar em nada, não sentia dor, nem tristeza, nem paz, nem alegria. Eu era apenas mar.
Abri meus olhos pela última vez. Lá não era escuro, como eu pensava, era claro e iluminado. Eu estava em outro mundo, sem formato, sem limites. Eu também não tinha mais limites quaisquer. Agora era parte daquele todo, logo eu estaria em todos os lugares. Finalmente seria livre.
Não sei quanto tempo se passou desde que fechei meus olhos. Via apenas a pureza do branco, e eu estava acordada de olhos fechados. Não sentia meu corpo, não sentia o ar, nem sentia qualquer coisa ao meu redor. Apenas aquele lugar que era tão lindo, tão singelo, infinito até onde meus olhos poderiam alcançar. Branco. Nada mais.
Estava feliz. Tinha chegado ao meu destino?
De repente vi o branco manchando-se de cores infinitas, misturando-se, as águas novamente inundaram o meu ser, não estava mais leve, senti o peso do meu corpo e a aspereza da terra, senti dor. Não conseguia entender, não conseguia sequer pensar, ele me aceitara gentilmente, não era pra ser assim, rude, indelicado. Senti o vento em meu rosto novamente, e a luz. O branco ainda tentava encobrir minha alma, mas era tarde demais.
Eu estava na praia.
Chorei. Minhas mãos rasgaram a areia. Sentia dor e muito frio. Ele estava ao meu lado, ajoelhado, as mãos em meus cabelos. Abri meus olhos e encontrei as lágrimas nos olhos dele. Porque fez isso? Porque não me deixou? Eu estava livre, estava em paz. Quis levantar e voltar, minhas pernas não me obedeceram, eu caí. Senti a frieza das areias revoltadas, indignadas com aquela rejeição. O feroz urrava alto, senti medo naquele momento. Eu o traíra, e ele estava bravo.
Então meu odiado amado me abraçou como há tempos não fazia. Não vá – ele disse – eu te amo. Não – respondi – você me possui não me ama mais. Nossos lábios se tocaram novamente, e ele estava frio como o mar. Segurou-me em seus braços e me ergueu. Senti o seu peito acelerado junto ao meu rosto, era verdade, senti o calor. Então ele me amava?... Refugiei-me em seu abraço como uma menina rebelde. O mar reclamava o meu corpo, revolto e agora distante, feroz, imponente, furioso.
Espere – eu pedi ao meu amado. Ele me libertou delicadamente e eu me voltei novamente para o mar. Não faça isso – ele suplicou, segurando minha mão. Eu voltarei – prometi. Corri pelas areias até senti-lo novamente em meus pés. Agora era gelado, não aceitava aquela traição. Eu era dele e ele era meu, eu havia aceitado ser mar. E não cumpri minha parte.
Tirei meu laço de flores bordadas dos cabelos. Abaixei, meu amado me olhava ao longe, aflito. As ondas vieram me punir, bateram forte em meu corpo. Fiquei firme, não deixei me abater. Quando recuaram, escavei as areias delicadamente e ali depositei meu laço tão querido, parte da minha vida, parte do meu coração. E o feroz acalmou-se, ainda seria dele, ainda sou dele.
Para sempre serei mar.
Léo Gomes