Pechincha

Tá novo, novo, novo. Veja, lataria perfeita, bancos, a revisão foi feita, mas não rodou nem sete mil, tá até cheirando! Sim, na concessionária, o manual tá aqui no porta luvas. Aqui, nota fiscal no meu nome. É um ponto seis, mas é bem econômico. Doze, treze, na cidade, quatorze na estrada. Mas eu rodo pouco, moro perto do trabalho. Tem direção, ar, vidros... trava, alarme, tudo no controle. Completinho. Por quê? Ah, é uma longa história, não vale a pena... Mesmo? Tá com tempo? Bom, vem aqui atrás. Tá vendo isso aqui? Pois bem, pode parecer uma bobagem, mas é este o motivo.

Bem, eu fui promovido ano passado, e meu carro já estava precisando ser trocado... Eu tinha, ainda tenho, algumas dívidas, mas fiz as contas e achei que dava. Tá tudo em dia, quanto a isso pode ficar tranquilo. Minha mulher queria muito este modelo, e é um bom carro mesmo. Foi o primeiro zero que eu tirei. Foi no fim de janeiro. Mas, enfim, ao que interessa. Você sabe dessa moda agora de colar adesivos na traseira com os membros da família, como esses aí. Foi minha filha quem insistiu, eu não queria adesivo nenhum, mas sabe como é: o homem é a cabeça da família, mas a mulher é o pescoço, e ela gostou da ideia. Foi na mesma loja em que instalei o alarme, eles tinham várias opções, eu gostei mais desta.

Este aqui com um sorriso bonachão sou eu, embora me digam que tenho um humor terrível, o que não é verdade, claro. À minha esquerda está minha mãe, de coque no cabelo e crochê nas mãos, o cabelo dela é curto e a única habilidade dela é espezinhar todo mundo. À minha direita, minha esposa, magra e jovial, quando na verdade é gordinha e cheia de rugas. Aí vem meu filho, que tem cara de inteligente aqui mas é um brutamontes apatetado. Depois, minha filha, a caçula, que é um doce aqui e na vida real, no entanto... vai escutando. Por fim, esse cãozinho adorável e felpudo representa na verdade uma cadela, vira-lata das mais corriqueiras.

Eu falei da cadelinha, o nome dela é Espoleta. Era, na verdade. Ela costumava fugir, e numa dessas foi atropelada. Olhei para o adesivo, não quis arrancar: ia ficar uma marca de cola misturada com poeira. Foi em março, começo de março. No fim do mês, minha mãe, dona Risoleta, teve um aneurisma, morreu na hora. Olhava para o carro: seria uma maldição? Bobagem, nunca fui supersticioso. Aí minha filha conseguiu um trabalho temporário, na montagem do Cirque du Soleil. Apareceu um dia dizendo que conheceu um clown, estava apaixonada; não gostei nada daquilo, e não deu outra: minha Lucinha abandonou a faculdade e a nós todos, e literalmente fugiu com o circo. Quem bancou o palhaço fui eu. Foi em maio, já. Em agosto foi o Miguel: eu já estava achando estranho ele ter um segundo celular, e sempre que tocava era um mistério danado, e ele descia por alguns minutos. Foi preso com meio quilo de maconha saindo de uma favela. Eu nem tentei ajudar. Tudo estava desmoronando, mas ainda dava para piorar: no feriado de doze de outubro eu ia viajar com a Tânia, tentar espairecer, minha vida no trabalho também andava estressante. Ela disse, na véspera, que não ia mais; tentei conversar, aí ela disse que ia me deixar, que estava apaixonada e nada ia fazê-la desistir de viver com a Ingrid. Formidável.

Portanto, de todas essas figuras aí eu... Produto? Que produto? Não, eu... o senhor pode usar, não vai querer a família de outra pessoa, e que nem existe mais... Barato? É, eu quero vender logo. Vou perder um pouco sim. Não, não tem truque nenhum, é isso aí que eu contei. Dá pra entender, não? Dirigir, mas é claro! Pode entrar aí, só essa ré aqui que é meio chata, você puxa... ah, já conhece? Pois é, o câmbio é ótimo também, macio.