O DIA DO PINDURA
Todo estudante de direito no Brasil já praticou, ou pelo menos ouviu falar sobre o Dia do Pindura. È uma velha tradição que vem dos tempos do Império, quando, em 1827, o Imperador Pedro I autorizou a criação dos primeiros cursos de direito no Brasil. Essa comemoração é feita no dia 11 de agosto e consiste numa brincadeira que a maioria dos proprietários de restaurantes acha deplorável, mas que os estudantes adoram. Consiste simplesmente em juntar uma turma e ir comer num restaurante tradicional, e na hora de pagar a conta, mandar pendurar. Daí a expressão Dia do Pindura. A conta fica pendurada até o dia em os acadêmicos, tendo se formado, voltam para pagar a conta.
Quer dizer: os honestos voltam. Dizem que esse número não é lá muito grande porque os estudantes de direito, depois que aprendem a usar a lei para livrar os outros suas encrencas, a primeira coisa que fazem é usá-la para beneficiarem a si mesmos. Dái se dizer que advogado honesto é tão raro quanto irlandes que não gosta de beber.
Mas isso tudo é maldade. Meus melhores amigos são profissionais de direito e é entre eles que identifico os maiores modelos de virtude e ética que conheço. A brincadeira do Pindura não tem nada a ver com a honestidade da classe e se alguns malandros dela se valem para comer de graça pela simples intenção de levar uma vantagem, isso é defeito de personalidade e não uma característica da classe.
O Pindura virou uma tradição que atravessou os séculos e ainda hoje se ouve falar de algumas escaramuças entre acadêmicos e proprietários de restaurantes por causa da brincadeira. Embora tenha havido até jurisprudência a respeito, sustentando o direito dos estudantes praticarem a brincadeira, hoje a tradição está bastante enfraquecida em virtude da resistência dos proprietários dos restaurantes.
Eu me formei em direito na década de 1970 e naquela época a tradição ainda era bem forte. A nossa faculdade era nova e tudo que as antigas e nomeadas faculdades da capital faziam, nós queríamos imitar. O Pindura foi uma delas. Havia um restaurante famoso na cidade cujo dono era um irascível espanhol que tinha fama de mão-de-vaca e encrenqueiro e por isso mesmo ele foi o escolhido daquele ano.
No dia 11 de agosto lá estávamos nós, seis rapazes animados, sentados em uma mesa, perto da porta, comendo o que havia de melhor no restaurante. Havíamos sentado em uma mesa próxima à porta de propósito, e também pedimos os pratos mais caros de caso pensado.
Tudo estava planejado. Tínhamos ido todos num carro só. Era um Chevrolet Opala que pertencia a um dos colegas. Escolhemos o carro dele porque era grandão e cabia os seis, ainda que meio apertados. Pedimos os pratos mais sofisticados, bebemos o melhor vinho da carta que o garçom nos apresentou e rimos e conversamos alto o tempo todo, na melhor tradição dos estudantes, num dia 11 de agosto. Lá pelas tantas(era já quase meia-noite e só havia uns três ou quatro casais no restaurante, o Jairo, que era o dono do carro, saiu de fininho. Disse que ia ao banheiro. Na verdade, ele tinha saído, ido para o carro e ligado o motor. E logo os demais também foram saindo, um a um, de fininho. Eu fui o terceiro. Em pouco menos de cinco minutos todos estávamos no carro, fugindo do estacionamento, queimando pneus feito doidos. Na mesa do restaurante, dentro da caderneta que apresentava a conta, deixamos o bilhete: “ Viva o 11 de agosto. Pendura a conta. Um dia, quando formos famosos e ricos voltaremos para pagá-la.”
Tinhamos saído do restaurante e estávamos subindo a rua que nos levaria até o centro da cidade. Era uma rua íngreme, com uma subida de cerca de quinhentos metros, bastante acentuada. Tínhamos já vencidos uns trezentos metros da subida, quando de súbito, o motor do Opala começou a engasgar e dar solavancos. Deus três ou quatros engripadas e depois morreu. Saímos todos e começamos o trabalho de tentar reanimar o velho engenho. “Deve ser velas”, disse um dos colegas. “ Vê o cabo do acelerador”, disse outro.” “Será que não é o carburador?” Via-se que ninguém entendia bulhufas do assunto.
Empurrar não dava. A ladeira era muito íngreme. Só se fosse para baixo, mas nessa direção a gente iria parar de novo na porta do restaurante. E era de lá mesmo que nós estávamos fugindo. Não levou, creio, mais do cinco minutos, enquanto nós estávamos decidindo o que fazer, para uma viatura da polícia parar ao lado do nosso carro. Desceram dois policiais com cara de muitos poucos amigos. Logo em seguida estacionou atrás dela um outro carro. Dele desceram o espanhol e dois dos seus empregados, com umas caras mais invocadas ainda.
Para encurtar a história, o espanhol não gostara da brincadeira e chamara a polícia. Ele já estava desconfiado do negócio e ficara de sobreaviso. Por isso a polícia chegara tão rápido. Nós sabíamos que o homem não tinha esse tipo de humor e por isso mesmo havíamos escolhido seu restaurante. Divertia-nos muito mais a bronca em que ele ia ficar do que a prática da tradição do Pindura.
Em suma, fomos convidados a pagar a conta, com um certo acréscimo, senão íriamos todos presos. Ninguém queria ser preso, fixado e indiciado por estelionato, fraude ou qualquer outro delito ou contravenção. Afinal, éramos todos estudantes de direito. Tínhamos que dar exemplo, disseram os policiais. Aquilo era uma esculhambação. Não adiantou o argumento do 11 de agosto, dia do advogado, tradição, escambau. O espanhol estava ficando cada vez mais nervoso e os policiais cada vez mais impacientes.
” Pindura o caralho. Vai pendurar no ...da mãe”, dizia ele. Problema. Ninguém tinha dinheiro. Tínhamos cotizado para por gasolina no Opalão. Tava todo mundo duro. Impasse. Várias propostas. O Jairo ficaria e nós iríamos, cada um para sua casa tentar arrumar dinheiro. O Jairo chiou, o espanhol não gostou, os policiais desconfiaram. Não vingou. O espanhol queria porque queria o dinheiro ali e agora. Ou então que fôssemos todos para a cadeia.
Solução. Depois de quase uma hora de discussão o espanhol concordou em ficar com os quatro pneus do carro em garantia pela dívida.Parecia ser a única coisa de valor naquela charanga. Os empregados pegaram os pneus(com a nossa ajuda, “aconselhados” gentilmente pelos policiais), puseram no porta malas do carro do espanhol e foram embora. Os policiais, depois de darem uma bela gozada com a nossa cara, também foram. E nós ficamos lá, os seis espertinhos, com a maior cara de babaca, no meio da rua, já quase de madrugada, meio que chorando (o Jairo) e nós outros rindo daquela situação.
No dia seguinte, cotizados os seis, ajuntamos a grana e fomos buscar os pneus. Pagamos, recebemos de volta os pneus, junto com uma bronca do espanhol e mais uma gozada dos empregados. Saímos do restaurante, os seis idiotas rolando os pneus pela rua, suando que nem demônios para subir a íngreme ladeira, até chegar no lugar onde o velho Opalão estava estacionado. Mais um baita trabalho para colocar os pneus nos aros. Quando o Jairo ligou o motor, nenhum barulho. Só se ouviu o clik da ignição. O carro parecia estar completamente mortinho. “Essa não”, disse o Jairo. “Agora foi a bateria que arriou.” Descemos para ver. Que nada. Dentro do capô quase vazio, só havia um enorme buracão. Alguém havia levado o motor, a bateria e tudo que deu para arrrancar do velho Opala.Ele parecia o peito de um cara que tinha sofrido uma autópcia e de onde todos os órgãos haviam sido arrancados, e só restavam veias rompidas e músculos e tendões arrebentados á força.
Nisso foi o que deu a nossa brincadeira do 11 de agosto, no Dia do Pindura. Ficamos o ano inteiro espremendo as nossas magras economias para pagar ao Jairo o prejuízo. Com a nossa ajuda ele comprou um fusca 73 que um ônibus jogou numa ribanceira da Rodovia dos Tamoios alguns meses depois, num dia em que estávamos indo para Caraguatatuba fazer farra. Tínhamos parado no acostamento, próximo de uma bica dágua, e aí veio o buzão, bateu na trazeira dele e jogou o bichinho lá nas profundezas do inferno. Ainda bem que nenhum de nós estava dentro dele...
Mas essa é outra história.Malgrado o mico que todos pagamos, restou uma coisa de bom em tudo isso. Nunca um de nós pode reclamar do outro. Dividimos tudo, até os prejuízos. Se alguém pode falar de lealdade, amizade e ética entre colegas, somos nós. Até hoje, mais de quarenta anos depois, somos todos grandes amigos, apesar de estarmos espalhados pelo país todo. Alguns já deixaram o nosso convívio. Pelo menos uma vez por ano, os que ainda estamos vivos nos reunimos no dia da nossa formatura para comemorar e lembrar esses nossos alegres e aventurosos dias. E adivinhem do que mais lembramos e qual a aventura que mais nos diverte.
Todo estudante de direito no Brasil já praticou, ou pelo menos ouviu falar sobre o Dia do Pindura. È uma velha tradição que vem dos tempos do Império, quando, em 1827, o Imperador Pedro I autorizou a criação dos primeiros cursos de direito no Brasil. Essa comemoração é feita no dia 11 de agosto e consiste numa brincadeira que a maioria dos proprietários de restaurantes acha deplorável, mas que os estudantes adoram. Consiste simplesmente em juntar uma turma e ir comer num restaurante tradicional, e na hora de pagar a conta, mandar pendurar. Daí a expressão Dia do Pindura. A conta fica pendurada até o dia em os acadêmicos, tendo se formado, voltam para pagar a conta.
Quer dizer: os honestos voltam. Dizem que esse número não é lá muito grande porque os estudantes de direito, depois que aprendem a usar a lei para livrar os outros suas encrencas, a primeira coisa que fazem é usá-la para beneficiarem a si mesmos. Dái se dizer que advogado honesto é tão raro quanto irlandes que não gosta de beber.
Mas isso tudo é maldade. Meus melhores amigos são profissionais de direito e é entre eles que identifico os maiores modelos de virtude e ética que conheço. A brincadeira do Pindura não tem nada a ver com a honestidade da classe e se alguns malandros dela se valem para comer de graça pela simples intenção de levar uma vantagem, isso é defeito de personalidade e não uma característica da classe.
O Pindura virou uma tradição que atravessou os séculos e ainda hoje se ouve falar de algumas escaramuças entre acadêmicos e proprietários de restaurantes por causa da brincadeira. Embora tenha havido até jurisprudência a respeito, sustentando o direito dos estudantes praticarem a brincadeira, hoje a tradição está bastante enfraquecida em virtude da resistência dos proprietários dos restaurantes.
Eu me formei em direito na década de 1970 e naquela época a tradição ainda era bem forte. A nossa faculdade era nova e tudo que as antigas e nomeadas faculdades da capital faziam, nós queríamos imitar. O Pindura foi uma delas. Havia um restaurante famoso na cidade cujo dono era um irascível espanhol que tinha fama de mão-de-vaca e encrenqueiro e por isso mesmo ele foi o escolhido daquele ano.
No dia 11 de agosto lá estávamos nós, seis rapazes animados, sentados em uma mesa, perto da porta, comendo o que havia de melhor no restaurante. Havíamos sentado em uma mesa próxima à porta de propósito, e também pedimos os pratos mais caros de caso pensado.
Tudo estava planejado. Tínhamos ido todos num carro só. Era um Chevrolet Opala que pertencia a um dos colegas. Escolhemos o carro dele porque era grandão e cabia os seis, ainda que meio apertados. Pedimos os pratos mais sofisticados, bebemos o melhor vinho da carta que o garçom nos apresentou e rimos e conversamos alto o tempo todo, na melhor tradição dos estudantes, num dia 11 de agosto. Lá pelas tantas(era já quase meia-noite e só havia uns três ou quatro casais no restaurante, o Jairo, que era o dono do carro, saiu de fininho. Disse que ia ao banheiro. Na verdade, ele tinha saído, ido para o carro e ligado o motor. E logo os demais também foram saindo, um a um, de fininho. Eu fui o terceiro. Em pouco menos de cinco minutos todos estávamos no carro, fugindo do estacionamento, queimando pneus feito doidos. Na mesa do restaurante, dentro da caderneta que apresentava a conta, deixamos o bilhete: “ Viva o 11 de agosto. Pendura a conta. Um dia, quando formos famosos e ricos voltaremos para pagá-la.”
Tinhamos saído do restaurante e estávamos subindo a rua que nos levaria até o centro da cidade. Era uma rua íngreme, com uma subida de cerca de quinhentos metros, bastante acentuada. Tínhamos já vencidos uns trezentos metros da subida, quando de súbito, o motor do Opala começou a engasgar e dar solavancos. Deus três ou quatros engripadas e depois morreu. Saímos todos e começamos o trabalho de tentar reanimar o velho engenho. “Deve ser velas”, disse um dos colegas. “ Vê o cabo do acelerador”, disse outro.” “Será que não é o carburador?” Via-se que ninguém entendia bulhufas do assunto.
Empurrar não dava. A ladeira era muito íngreme. Só se fosse para baixo, mas nessa direção a gente iria parar de novo na porta do restaurante. E era de lá mesmo que nós estávamos fugindo. Não levou, creio, mais do cinco minutos, enquanto nós estávamos decidindo o que fazer, para uma viatura da polícia parar ao lado do nosso carro. Desceram dois policiais com cara de muitos poucos amigos. Logo em seguida estacionou atrás dela um outro carro. Dele desceram o espanhol e dois dos seus empregados, com umas caras mais invocadas ainda.
Para encurtar a história, o espanhol não gostara da brincadeira e chamara a polícia. Ele já estava desconfiado do negócio e ficara de sobreaviso. Por isso a polícia chegara tão rápido. Nós sabíamos que o homem não tinha esse tipo de humor e por isso mesmo havíamos escolhido seu restaurante. Divertia-nos muito mais a bronca em que ele ia ficar do que a prática da tradição do Pindura.
Em suma, fomos convidados a pagar a conta, com um certo acréscimo, senão íriamos todos presos. Ninguém queria ser preso, fixado e indiciado por estelionato, fraude ou qualquer outro delito ou contravenção. Afinal, éramos todos estudantes de direito. Tínhamos que dar exemplo, disseram os policiais. Aquilo era uma esculhambação. Não adiantou o argumento do 11 de agosto, dia do advogado, tradição, escambau. O espanhol estava ficando cada vez mais nervoso e os policiais cada vez mais impacientes.
” Pindura o caralho. Vai pendurar no ...da mãe”, dizia ele. Problema. Ninguém tinha dinheiro. Tínhamos cotizado para por gasolina no Opalão. Tava todo mundo duro. Impasse. Várias propostas. O Jairo ficaria e nós iríamos, cada um para sua casa tentar arrumar dinheiro. O Jairo chiou, o espanhol não gostou, os policiais desconfiaram. Não vingou. O espanhol queria porque queria o dinheiro ali e agora. Ou então que fôssemos todos para a cadeia.
Solução. Depois de quase uma hora de discussão o espanhol concordou em ficar com os quatro pneus do carro em garantia pela dívida.Parecia ser a única coisa de valor naquela charanga. Os empregados pegaram os pneus(com a nossa ajuda, “aconselhados” gentilmente pelos policiais), puseram no porta malas do carro do espanhol e foram embora. Os policiais, depois de darem uma bela gozada com a nossa cara, também foram. E nós ficamos lá, os seis espertinhos, com a maior cara de babaca, no meio da rua, já quase de madrugada, meio que chorando (o Jairo) e nós outros rindo daquela situação.
No dia seguinte, cotizados os seis, ajuntamos a grana e fomos buscar os pneus. Pagamos, recebemos de volta os pneus, junto com uma bronca do espanhol e mais uma gozada dos empregados. Saímos do restaurante, os seis idiotas rolando os pneus pela rua, suando que nem demônios para subir a íngreme ladeira, até chegar no lugar onde o velho Opalão estava estacionado. Mais um baita trabalho para colocar os pneus nos aros. Quando o Jairo ligou o motor, nenhum barulho. Só se ouviu o clik da ignição. O carro parecia estar completamente mortinho. “Essa não”, disse o Jairo. “Agora foi a bateria que arriou.” Descemos para ver. Que nada. Dentro do capô quase vazio, só havia um enorme buracão. Alguém havia levado o motor, a bateria e tudo que deu para arrrancar do velho Opala.Ele parecia o peito de um cara que tinha sofrido uma autópcia e de onde todos os órgãos haviam sido arrancados, e só restavam veias rompidas e músculos e tendões arrebentados á força.
Nisso foi o que deu a nossa brincadeira do 11 de agosto, no Dia do Pindura. Ficamos o ano inteiro espremendo as nossas magras economias para pagar ao Jairo o prejuízo. Com a nossa ajuda ele comprou um fusca 73 que um ônibus jogou numa ribanceira da Rodovia dos Tamoios alguns meses depois, num dia em que estávamos indo para Caraguatatuba fazer farra. Tínhamos parado no acostamento, próximo de uma bica dágua, e aí veio o buzão, bateu na trazeira dele e jogou o bichinho lá nas profundezas do inferno. Ainda bem que nenhum de nós estava dentro dele...
Mas essa é outra história.Malgrado o mico que todos pagamos, restou uma coisa de bom em tudo isso. Nunca um de nós pode reclamar do outro. Dividimos tudo, até os prejuízos. Se alguém pode falar de lealdade, amizade e ética entre colegas, somos nós. Até hoje, mais de quarenta anos depois, somos todos grandes amigos, apesar de estarmos espalhados pelo país todo. Alguns já deixaram o nosso convívio. Pelo menos uma vez por ano, os que ainda estamos vivos nos reunimos no dia da nossa formatura para comemorar e lembrar esses nossos alegres e aventurosos dias. E adivinhem do que mais lembramos e qual a aventura que mais nos diverte.