Rima Interna

RIMA INTERNA

A vontade de se expressar faz parte de todo ser humano. A palavra é a metáfora de nossas mentes e corações. Para Murilo, o tempo da palavra não havia chegado em extensão. Ele dizia somente o necessário. Sua família acostumara com aquela personalidade do moço. Os colegas de sala de aula também. Murilo era assim e pronto.

Nada explicava seu jeito de ser. Tudo em sua vida corria normalmente. Era bonito, loiro, de olhos verdes, alto, corpo “sarado”. Tinha dezessete anos. Preparava-se para prestar o vestibular de medicina. Estudava muito, talvez para compensar o seu mutismo.

Não era fácil para Murilo encarar aquela timidez. Quantas palavras ficavam guardadas em sua garganta? Suas noites de sono eram carregadas de sonhos; neles falava muito. Mas as palavras que estavam embutidas em seu sono se sobrepunham umas às outras. Um dia, sonhou que pedia a Deus um sabonete para tomar banho com a intenção de lavar o mundo. Estranho: as palavras se diziam ao mesmo tempo, mesmo assim as discernia.

Ficava, então, pensando o que gostaria de limpar: seriam as doenças, maldades, a corrupção, o distanciamento... O mundo para ele precisava de uma grande reforma. Por isso a vocação para médico. Queria ajudar. Ser útil. E com ele mesmo o que fazer? Como poderia se expandir? Haveria de ser um bom profissional da saúde. No entanto, como conversaria com seus pacientes? Se, às vezes, até gaguejava ao falar. Ficava vermelho como um morango maduro ao fazer alguma pergunta a um professor.

Murilo nunca havia namorado. Tinha pensado em várias garotas desde os seus doze anos. Ensaiava, ensaiava para se aproximar delas e não conseguia vencer o medo de falar. Então se punha a imaginar o quanto as palavras são bonitas e transformadoras. Com elas poderia sair de seu estado de introspecção e ir além de seu mundo tão particularmente reservado na solidão. Talvez por isso gostasse tanto de poesias. Seus poetas prediletos eram: Carlos Drummond, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto. Enfim, lia vários escritores. De vez em quando, colocava-se a escrever alguns versos. Não gostava deles. Eram muito inferiores aos dos grandes escritores que admirava. Escrevia somente para lavar a alma, por assim dizer. Coisa de adolescente, justificava-se para si mesmo. Um tema recorrente do poetinha era a sua própria timidez:

Busco a palavra exata,

nenhuma delas me vem mentir.

Palavra é água límpida,

jorra na face, nos olhos,

diz-me da beleza misteriosa:

uma palavra antes só,

depois acompanhada,

Mistura tantas...

Frases de volume.

Rio em minha boca, não mais silêncio.

Outro poema de Murilo diz de sua busca por uma namoradinha:

Onde se encontra sua face de sonho?

Talvez nos redemoinhos das ruas movimentadas.

Assim hei de lhe descobrir em multidões.

Não sei se posso com você em escuridões.

Murilo, na ânsia de criar palavras e sentimentos, convidou Lídia, sua colega de sala de aula para estudarem juntos. Ela sem vacilar aceitou, já que Murilo tinha notas excelentes e fama de inteligente. Marcaram os estudos para o dia seguinte em casa da menina. Murilo ficou tão radiante, que custou a pegar no sono. Havia conseguido convidar alguém para alguma coisa. Que fosse o estudo, o que ele fazia tão bem sozinho. Mas convidara Lídia: interessante, estudiosa e comunicativa. Quando dormiu, sonhou com um imenso livro e Lídia dentro, não havia Letras. Ela perguntava: “qual caminho vai seguir?” Instantaneamente, ela sumiu do livro grande que ficou pequeno e cheio de palavras. Uma delas ocupava o centro da página e ocultava outras: Medo.

Murilo sabia de seu medo. Queria falar com os pais sobre isso. Mas, eles se assustariam. Afinal, ele ia tão bem na escola. Estudava demais. Eles se orgulhavam do futuro médico. A solidão do rapaz era entendida como preparação, estudo. Esqueciam a criança quieta. Para seus pais, ele era como era, porque estudava incessantemente. Descanso definido.

A campainha da casa de Lídia tocou. Uma secretária veio abrir a porta. Balbuciante Murilo perguntou:

-Lí Lí dia es es tá?

–Ah! Sim. Você é o colega dela que veio estudar, entre, por favor.

Lídia levou uns cinco minutos para aparecer na sala. Ele se sentou numa cadeira para esperá-la, em minutos de eternidade.

_Olá, Murilo, como vai? Que bom que veio. Vamos devorar os livros. Quero aproveitar seus conhecimentos.

– Sim, Lídia, vamos estudar muito.

Os dois foram para uma escrivaninha no quarto de Lídia. Passaram a tarde toda estudando, só pararam para tomar café. Murilo quase não tocou em nada, tamanha era sua timidez. No momento de ir embora, Lídia lhe deu um beijo no rosto e agradeceu muito.

Aquele dia de estudos, foi um grande passo para ele. Enquanto eles estudavam, falou, normalmente, sem gaguejar. E a alegria do beijo que recebera dela virou poesia:

Quando você chegou e disse –“olá,”

meu coração se encheu de palavras

escondidas: guardiãs do amanhã.

Mas quando me deu um beijo,

nenhuma palavra gritou dentro em mim:

todas as palavras foram ditas.

Lídia passara a telefonar para Murilo chamando-o para estudar. Aos poucos os dois conversavam sobre outras coisas. Iam ao cinema, teatro, museus, exposições, e lanchonetes juntos. Conversavam sobre todas as coisas que viviam. Lídia também, como ele, não namorava.

Passaram-se seis meses e faltava apenas um para o vestibular. Murilo e Lídia continuavam do mesmo jeito. Ele pensava em lhe beijar, pedir em namoro, entretanto, não tinha coragem. No fundo, ele sabia: ela esperava por ele. O moço, encantado com o reino das palavras, só se declarava nos poemas:

Lídia, venha ouvir minha história:

o mundo era incompleto,

mas, descobri a beleza do vento,

que balança seus cabelos.

Descobri os segredos da amizade,

que faz de dois uma roda viva.

Descobri a beleza do seu sorriso,

que causa em meus lábios,

uma sede infinita, uma água na boca.

Os moços prestaram vestibular em cidades diferentes. Por isso, moravam distantes do outro. Continuaram a se comunicar por correspondências e internet. Aquela atração, sentida, anteriormente, transformara-se numa grande amizade.

Murilo já não era o mesmo. Comunicava-se com seus colegas. Estudava com vários. Apresentava trabalhos sem gaguejar. Não estava namorando, mas já havia ficado com algumas garotas de sua escola.

Os poemas, ele continuava escrevendo:

Lídia, um dia a conheci na palavra guardada.

Vivemos uma história de gestos falantes.

Fomos além no meu íntimo, na palavra solta.

Como um punhal que fere o medo.

Hoje, meu velho silêncio, assaltado de alegrias,

jorra rios de minha garganta.

Neusa Azevedo
Enviado por Neusa Azevedo em 28/01/2012
Código do texto: T3466519