Zé Ninguém
As agruras da vida por aqui se manifestam até na escuridão do olho cego. Os velhos caminhões pau-de-arara engrossam os contingentes de gentes escarnecidas, esqueléticas do sertão pernambucano. Por onde passamos registramos o caos urbano do povo interiorano que se espreme junto às grandes avenidas da capital. As ruas estão cheias de seres rastejantes, famintos com suas latas de leite vazias a espera de um trocado. Seres trocados pela ambição de uma sociedade guarnecida e preconceituosa que se finge de cega frente à cena horripilante da multidão de Zés Ninguéns.
A Rua do Imperador é palco preferido para uma cena surrealista. Não são relógios derretidos expostos em galhos de árvores, é povo mesmo, derretido pela miséria diária, por uma fome sem fim. Mendigos urbanos misturam-se aos novos mendigos numa congregação agonizante lutando por trocados, vinténs para poderem continuar suas subvidas, seus pesadelos, seus infortúnios, quiçá sua sorte.
Zé Ninguém está lá, não tem sexo, ou melhor, todos os sexos, não têm nome, ou melhor, vários nomes. Mas a quem interessar saber sua graça, a desgraça risca uma linha onde os bem nascidos não querem ultrapassar. O pensamento esnobe não sabe que eles pensam, ou pensam que eles não pensam. Na verdade a síndrome da fome que os consome atrapalha o raciocínio, lhes deturpa a fala e ele gagueja, titubeia, se enfraquece dorme.
São milhões de zés ninguéns esparramados pelo país, fracos, fadados ao fracasso imposto por uma sociedade míope, que enxerga apenas a pequena ponta do nariz. Mas eles sobrevivem, com muito pouco, mas continuam sobrevivendo em meio a uma cinzenta vida que se confunde com as cores de seus lençóis, dos seus rotos trajes, embebidos de sujeira.
A mão ainda sobe, mesmo o corpo permanecendo enfraquecidamente deitado. Trêmula, ela não pode permanecer muito tempo suspensa. A lata vazia pesa, como pesa o estômago vazio de sustâncias, impregnados de ar, de roncos fortes, de dores viscerais.
Mas o Zé, nem sempre é o mesmo Zé, que permanece deitado. Ninguém também não espera a fome passar e ver a comida passar ao largo. Ele também luta, uma luta desleal, mas instigadora. Ele quer estudar e estuda a luz do candeeiro de querosene, sai de madrugada descalço, sem um único grão de feijão no bucho. Ninguém também vê que se ficar parado onde todos estão, não há sustância que venha em quantidade a saciar-lhe a fome, a alimentar um ninguénzinho que está por rebentar-se no útero de outro ninguém. O Ninguém sertanejo e o urbano são filhos da mesma terra, a terra de ninguém.