ENCONTRO
A chuva continua lá fora. A madrugada aos poucos se converte num amanhecer. E eu, cá estou, sozinho numa sala qualquer deste grande hospital num desabafo solitário.
Sou médico. Vocacionado e inspirado. Alguém que sonhou com o branco do jaleco e no trato com a vida. Alguém que, até hoje, creu na capacidade humana de desenvolver a vida. Alguém que tinha um deus com o nome de... ciência.
Mas, não é sobre a minha vida que registro estas breves palavras nesta página de um bloco de receitas, é sobre esta madrugada, ou melhor, sobre o que vivi esta madrugada. Como acontece em todo plantão, cheguei por volta das 22 horas. Tomei um café e procurei o chefe do plantão para obter as orientações. Logo depois passei a atender numa das salas da emergência C, local destinado aos pacientes que não têm plano de saúde. Confesso que, não lembro bem dos rostos, mas a cada atendimento me sentia mais e mais confiante na minha capacidade de ser médico. Um médico que estudou cada fase do processo orgânico humano. Um médico que não se deixava levar pela emoção de ver além da pesquisa. Alguém que até esta madrugada, simplesmente ignorava o nome Deus.
Tudo ia bem, até que minha sala foi invadida por um homem, negro, forte e decidido. Um homem que trazia no colo uma menina desmaiada. Um pai que, desesperadamente, resumiu o momento numa frase: "Doutor, salve minha filha". Meu olhar encontrou o olhar daquele pai e encontrou um pedido de socorro além das palavras. Acenei para os seguranças e com cuidado deitei o corpo inerte da criança na maca. Verifiquei os sinais e perguntei o que acontecera. "Nada. Ela simplesmente caiu desacordada" respondeu. Vi que a pulsação estava fraca, assim como as batidas do coração. Rapidamente tomei as primeiras medidas, que em pouco tempo vi que não adiantaram, já que a menina não respondia. Aprimorei as técnicas de mapeamento e... nada; nenhuma resposta. Aos poucos, o tempo passou a ser inimigo. Não sabia o mal que combatia e diante da falta de respostas, optei por mante-la viva até que outros procedimentos pudessem ser realizados. Foi quando observei um suspiro e o relaxamento do corpo. Não tive duvidas da... morte. Morte. Este nome nunca me soara tão forte. Num espaço de menos de cinco minutos desde a entrada daquele pai, eu, o Doutor, me sentia impotente diante da predominância da... morte. Assim, repentina, inexplicável e implacável. "O que fazer?" pensei, mas o quê? "Meu Deus..." Soou estranho, mas veio como um relâmpago da tempestade que passou a fazer parte noite. Logo eu? Marxista desde tenra idade? Eu, que via no nome (Deus) uma fonte de dominação religiosa. Eu, que estudara minuciosamente cada manifestação espiritual como fuga da realidade? Logo eu? E alí, diante de um pai desesperado e de uma menina quase morta... Ousei num pensamento quase instintivo: "Deus me ajude". Foi quando, um súbito pensamento surgiu:Traqueotomia.... Mas como? Tal procedimento, não cabia naquela realidade, já que a menina.... Bem, eu não tinha mais tempo. Passei a mão no bisturi, e, mesmo com o olhares assustados dos enfermeiros e do pai, mas confiante em Algo Além que se fazia presente, fiz o procedimento. Logo depois, determinei que a levassem para a UTI e me tranquei num quarto. Confuso e cansado lá fiquei por uns quarenta minutos, até que alguém bateu na porta. Era Ermelinda, uma das enfermeiras. "A menina está viva". Olhei com mais atenção e vi o sorriso. "O senhor foi muito corajoso" ouvi em seguida. Sorri de volta e voltei ao meu silencio.
Sim, eu fui corajoso. Corajoso por me vencer e reconhecer Deus como Presente em nós. Corajoso, por me reconhecer como criatura de Um Criador- Pai, que mesmo depois de anos de ignorância, ainda assim socorreu o filho. Agora estou aqui, escrevendo minha experiência, sem a menor pretensão estética, mas escrevendo como um desabafo sincero de um homem que se permitiu no Encontro que mudou minha vida.
(Carta encontrada, sem assinatura, numa lixeira de um grande hospital do Rio de Janeiro)