FELIZ DECISÃO
A emancipação do município seria comemorada naquele final de semana.
A programação incluía procissão, missa campal celebrada pelo bispo da diocese, apresentação da filarmônica no coreto da praça e a festa de rua com mamulengo, carrossel, montanha russa, bote, tira prosa, roda gigante e baile no mercado público além de duas girândolas, com quinhentos foguetes cada uma, que seriam queimadas no amanhecer e no anoitecer do domingo que era a real data do evento.
Vandinho, meu primo, que estava morando lá em casa por causa do curso de engenharia que fazia, só sossegou quando eu confirmei que também iria para a tal comemoração.
Afinal a única despesa que eu iria ter era comprar os refrigerantes que queria beber, porque não gosto de bebida alcoólica e fatalmente não iria encontrar os refrigerantes porque nessas ocasiões a população da cidade se multiplica por três ou quatro.
Meus pais também iriam para rever os parentes e participar da festa que eu tinha visto quando pequeno, quando não adiantava dizer que não queria ir porque não tinha alternativa, mas sempre ficava no sítio na casa do meu avô, ouvindo as histórias que ele contava.
Talvez fosse a oportunidade de arranjar uma namorada. Eu já estava formado, havia passado no concurso para a Fazenda Estadual, esperando a nomeação, e quase um ano sem arranjar ninguém interessante, cuja conversa fosse além das banalidades das novelas da televisão e dos noticiários dos roubos e desmandos dos políticos.
Vestidos com as roupas de festa ficamos nos degraus do prédio do banco, ao lado de Vandinho, eu olhava a procissão que estava passando em nossa frente.
O dobrado, executado pela banda da polícia, dava o compasso do cortejo.
No meio do povaréu um rosto me chamou a atenção.
Peguei no braço de Vandinho e disse num sussurro.
- Rapaz, vê que menina linda.
- Qual?
- Aquela ali vestida de branco.
- Oh! Zé Mingonga estão todas vestidas de branco.
- A terceira da segunda fila...
- Hum! É Marisa.
- Você conhece?
- Sim, é filha de padrinho Zé Brito.
- Me apresenta a ela, vai!
- Rapaz, ela é minha namorada...
- Oh! Desculpe-me não sabia.
- Ela tem uma irmã, muito bonita também. Se você quiser eu lhe apresento. Mas tem que ser escondido do pai, porque ele morre de ciúme das filhas. Ele nem sabe do namoro da gente.
Depois da procissão, enquanto se arrumavam para a missa solene, Marisa chamou Vandinho do meio do povo. Ele não viu, mas eu que estava impressionado pela beleza da moça e que não perdia um só dos seus movimentos notei e mandei o primo ir falar com ela.
Dentro de pouco tempo ele estava de volta com Marisa e a irmã dela, Alice. Eram tão parecidas que julguei serem gêmeas.
Depois das apresentações marcamos para nos encontrarmos no baile que começaria às oito horas porque as filhas de família tinham que ir para casa antes das dez da noite.
Praticamente toda cidade estava lá, mas poucos pares dançando.
Seguindo o costume da cidade, pedi autorização ao padrinho Zé Brito para dançar com uma das suas filhas. Ele me olhou dos pés à cabeça e disse secamente.
- Só deixo porque você é filho do meu compadre Luis, mas veja lá como vai ser essa dança.
Chamei Alice para dançarmos, mas ela não quis então, para não chamar atenção sobre o namoro do primo, chamei Marisa.
Seu perfume embriagador me inundou totalmente e eu senti inveja do meu primo por estar namorando uma moça tão linda.
Por terem casa na cidade as duas tinham trocado a roupa da procissão pela roupa da festa. Marisa estava ainda mais linda vestida de azul.
De repente meu primo Vandinho nos parou no salão para trocar de par. Ele estava dançando com outra moça também bonita, mas que eu não conhecia. Ele disse:
- Essa é Luzinete. Vamos trocar para eu poder dançar com Marisa.
Trocamos e em pouco tempo o compadre Zé Brito, quando viu a troca, mandou parar a música e do local em que estava mandou a filha para casa.
Foi um constrangimento horrível e eu fui falar com ele.
- Eu permiti que minha filha dançasse com o senhor, não foi com qualquer um.
- Mas Vandinho não é qualquer um, é meu primo, sobrinho do seu amigo Luis.
- Mas eu não gosto dele e não quero que chegue perto de minhas filhas...
Por causa desse incidente resolvi ir para a casa de meu avô.
Logo depois Vandinho chegou e fez sinal para que eu fosse falar com ele longe de vovô e quando chegamos ao quarto, ele foi direto.
- Combinei com Marisa. Vamos fugir para casar. Logo mais, perto das duas da madrugada, vou buscá-la na fazenda. Você me ajuda?
Atendi na hora. Eu sempre achei muito romântico esse negócio de casal fugir da tirania dos parentes para poder viver as suas histórias de amor. Seria um caso de Romeu e Julieta com final feliz.
Não dava para ir de carro. Iríamos a cavalo. Eu ficaria na estrada segurando os três animais enquanto Vandinho iria perto da casa buscar a noiva com a mala de roupa.
Eram pelo menos seis quilômetros entre as porteiras das fazendas e a casa do compadre Zé Brito ficava praticamente no meio da propriedade dele, portanto o pedaço de terreno que os dois teriam que andar a pé, correndo risco de serem surpreendidos, era bem grande.
Enquanto seguíamos em passo lento, Vandinho comentou que o pai de Marisa não queria vê-lo por perto das filhas porque várias vezes, ele estivera envolvido em confusão por causa de jogo e bebedeiras e concluiu me pedindo que fosse no lugar dele buscar a menina.
Paramos numa distância confortável e eu levei o chocalho com o badalo amarrado com o lenço para dar o sinal que era deixar o chocalho badalar algumas vezes perto da casa.
A janela era do lado esquerdo e se tudo estivesse bem, a menina acenderia uma vela no quarto.
Eu não conhecia o terreno e levei duas quedas além de me enredar na cerca de arame farpado, mas cheguei o mais perto possível, tirei o lenço e deixei o chocalho fazer a sua parte para dar a entender ser uma rês pastando por perto da casa. Pouco tempo depois a luz bruxuleante da vela apareceu no peitoral da janela.
- Está pronta? (perguntei a meia voz)
- Onde está Vandinho?
- Ficou na estrada. Pediu para eu vir lhe buscar por causa do seu pai.
Sem mais palavras Marisa me entregou a pequena mala contendo a sua roupa e sentou na janela.
Para evitar fazer zoada com o salto, segurei-a pela cintura e ela enlaçou meu pescoço e o seu perfume invadiu-me até a alma.
Assim enlaçados, dei alguns passos para trás e a pus no chão.
Marisa ficou parada olhando-me nos olhos, mal iluminados pela luz da vela.
- Vamos?
- Só irei se for para casar-me com você.
- Como disse?
- Isso que você ouviu. Vandinho não merece a minha confiança. Se não teve coragem para vir buscar-me, como é que vai ser com a vida de casado? E quando tiver que falar com papai?
Um turbilhão invadiu todo o meu ser e o amor à primeira vista que sentia por aquela mulher linda, macia, cheirosa foi mais forte que o compromisso assumido com o primo.
Fomos pegar o cavalo dela e pelo fundo da propriedade passamos para o sítio de vovô, onde ela ficou até o nosso casamento, uma semana depois.
Por causa disso Vandinho nunca mais falou conosco...
Hoje é o dia do batizado do nosso quarto filho e a festa é na casa do compadre Zé Brito que mandou matar um boi.
Eu estou indo para lá agora, se você quiser ir comigo, entre aqui na caminhonete...
Glossário:
Zé Mingonga = bobo