O Casarão Da Rua São Cristovão
O dia escaldante e luminoso que fazia destoava terrivelmente do estado de espírito que eu me encontrava. Eu estava triste. Naquele dia eu lembrava a morte de Anete. Minha Anete. Um ano se passou. Muita coisa mudou. Muitos já a esqueceram. Vivem suas vidas e suas rotinas, apenas com lembranças passageiras da presença dela entre nós. Eu não a esqueci. Penso nela todos os dias. Vivo ainda por ela. E mesmo sabendo que a vida tem que ser seguida adiante, mantenho-me atrelado a essa memória de forma irremediável. O ano passou levando com ele suas estações. A chuva caiu e subiu, as flores desabrocharam e secaram, o frio veio e se foi. E agora, neste candente mês, andando pela Rua São Cristovão, em baixo do sol sufocante, sigo para a casa em que ela nasceu, viveu e morreu em seus 24 anos de vida. Fui convidado por Dona Zuleica, mãe de Anete, para um almoço.
O sobrado de quatro pavimentos, fincados no alto da ladeira da tortuosa rua, tinha uma arquitetura dos meados do século XIX, misturados as modernidades do século atual. No térreo funcionava um sebo, negócio da família, muito conhecido e bem frequentado. A frente da casa tinha muros altos e portão de aço moderno e eletrônico. Uma porta de boa madeira, ao lado do portão eletrônico, levava ao corredor onde ficava a escada para subir para os outros cômodos. Pelo portão de aço era a entrada para o sebo e seu enorme pé-direito de quase cinco metros de altura. Circundando todo o casarão via-se um jardim. Nele, no jardim, existia uma horta, que tentava manter o viço de outros tempos, dos tempos de Anete viva, que ainda se colhia ervas e legumes. O primeiro e o segundo andares eram divididos em salas, quartos, cozinhas e banheiros, e era domiciliado pela família de Anete. Seus pais, seu único irmão, o seu tio João e sua avó, dividiam o espaçoso lugar. O último andar servia como sótão. Foi lá que aconteceu a tragédia que me tirou Anete, é também lá que se encontra toda a história da família. Família oitocentista, vindas do velho continente, trazendo para a pequena cidade nordestina a tradição das livrarias. O velho Onofre, bisavô de Anete, abriu no térreo desta casa a primeira livraria da cidade. E por ali muitos intelectuais, estudantes e escritores da época se encontravam e travavam discussões acaloradas sobre política, poesias e mulheres. Atualmente, o sebo, apesar de ser bem movimentado, é um pouco sombrio, não lembrando em nada a alegria radiante da velha Livraria Costa Coimbra. A sorumbática livraria dos dias de hoje é conduzida por Miranda, irmão mais velho de Anete. Miranda é um homem magro, alto, de 37 anos, solteiro, esquisito e almofadinha, que tem o costume de recitar poemas de sua autoria- mal escritos e bastante piegas – de forma muito afetada. O pior de tudo era que ele sempre pedia minha opinião sobre seus detestáveis poemas, e eu sempre, em respeito à Anete, mentia descaradamente, elogiando-o, quando na verdade minha vontade era gargalhar de suas idiotices e dizer-lhe o quanto eu o desprezava. Nunca gostei de poesias, para ser justo, nunca gostei de literatura. Eu leio bastante sobre minha área de atuação, o Direito, e também notícias do dia a dia em jornais diários para não ficar alheio as novidades, todavia, a leitura de poemas ou romances não me apetece, sempre considerei coisa de desocupados e que não me traria benefício algum.
Cheguei à casa ás 11h45min. O sebo estava aberto, apesar de ser feriado, e para meu azar se encontrava vazio. Isso queria dizer que eu tinha que dar atenção ao Miranda. Sujeitinho chato e pedante ele era. Eu fazia isso, dar atenção a ele, somente para poder ser convidado a visitar o sótão. Por isso, poderia passar horas e horas ouvindo a melosa ladainha poética de meu ex-cunhado. Sempre com um sorriso no rosto e um elogio na boca. Eu realmente não valho nada. No sótão, vendo fotos antigas e as pinturas de Anete, o mundo parava. Passei tardes inteiras ali, na companhia dela. Aproximei-me do livreiro e disse:
_Bom dia Miranda, como anda essa força?
_Está tudo bem meu cunhado. Finalmente chegou, mamãe já desceu duas vezes para saber se você já tinha chegado. Vamos subir para almoçar.
_Miranda, meu grande amigo e poeta invejável, por acaso sabe o que sua mãe quer falar comigo?
_Meu caro, por acaso eu sei sim, mas, deixarei que ela mesma fale.
_Não poderia adiantar o assunto para seu amigo aqui?
_Não, não poderia. Mamãe ficaria furiosa comigo, prefiro que você saiba por intermédio dela. Por favor, não insista meu amigo, e não fique bravo comigo.
“Filha de uma puta, sacana, mimadinho de merda” pensei cá com meus botões, e falei:
_Tudo bem Miranda, não tem importância alguma, nunca ficaria bravo com você por uma besteira dessas. Então, vamos ao almoço?
Saímos da livraria, sem sair da casa e sem fechar as grandes portas de madeira, Miranda apenas fechou o portão de aço com o auxílio do controle remoto, já que ele voltaria ao trabalho logo após a refeição. Seguimos por uma pequena trilha de pedras quadradas, pelo jardim do casarão, até uma portinhola que levava ao corredor da escada. Essa pequena porta não tinha tranca, encontrava-se sempre aberta. Os andares eram independentes, como se fossem apartamentos. No primeiro andar morava a mãe de Anete, o pai, e a avó. O segundo andar era dividido por Miranda e o tio João. O último andar era o sótão, que na verdade era uma mistura de ateliê, escritório e depósito. A pessoa que quisesse ir para outro andar tinha que sair do apartamento e ir pela escada, não tinha comunicação entre os pavimentos por dentro dos cômodos, desta forma os moradores poderiam ir e vir sem incomodar os outros. Muitas vezes fui visitar Anete no sótão sem que nenhum dos outros moradores soubessem que eu estava lá.
Subimos ao primeiro andar. Assim que entrei Dona Zuleica veio ao meu encontro, deu-me um forte abraço e me acompanhou até a mesa do almoço. A mesa estava posta apenas para duas pessoas. Estranhei aquilo e perguntei:
_Onde estão seu Miguel, o tio João e a vozinha? Não vão almoçar conosco? E o Miranda?
_Não, não vão. Hoje só vai ser eu e você meu filho. Mas não se preocupe com isso agora. Vamos comer, está como fome, não está?
_Sim, estou.
_Então não se faça de rogado e se sirva.
Estava tudo muito bom, delicioso mesmo. Dona Zuleica é uma cozinheira de mão cheia. A entrada foi uma salada crocante com folhas verdes, tomates cerejas, amêndoas e pequenos pedaços de pão torrado regados com um molho de azeite, mostarda, alho e mel. Como prato principal foi servido um filé mignon ao molho de vinho tinto e frutas vermelhas acompanhados de um risoto cremoso ao brie e brotos de rúcula. A sobremesa foi uma rabanada de leite condensado encharcadas no vinho do porto com sorvete de creme com raspas de chocolate. Na hora da refeição não conversamos. Dona Zuleica pediu dois cafezinhos para a ajudante e finalmente falou:
_Plínio, meu filho, o que eu vou dizer não lhe agradará, porém, mesmo com tristeza, tomei essa decisão e é irrevogável, por isso, depois de ouvir o comunicado peço que não insista com réplicas ou tréplicas, simplesmente cumpra o que eu vou lhe pedir.
_A senhora está me assustando.
_ Por isso vou direto ao assunto. Eu quero lhe dizer que você está proibido de retornar a essa casa.
Quando ela disse isso, tomei um grande susto, achei que não estivesse ouvido direito, e pensei que ela tivesse descoberto alguma coisa de ruim a meu respeito. Espantado perguntei:
_O que está dizendo dona Zuleica? Não posso acreditar no que estou ouvindo.
_Pois acredite, é verdade, estou lhe proibindo de voltar a essa casa. De hoje em diante você não será mais bem vindo aqui. Não fique zangado comigo, faço isto pensando no melhor pra você, e saiba que para mim também está sendo muito dolorido. Entretanto, não posso ver você perder sua vida e sua juventude amarrado nessa lembrança de Anete. Ela se foi há um ano e você esteve aqui praticamente todos os dias durante esse ano. Você está deixando sua vida de lado por um sentimento impossível. Anete está morta, ela se matou, mas você está vivo, então vá viver sua vida. Namore, faça novos amigos, aproveite seus 29 anos de vida menino, não se enterre com Anete. Por favor, me poupe dos pedidos para que mude de ideia, não vou mudar. Como falei antes, é irrevogável, não insista.
Fiquei sem saber o que dizer e o que pensar. Depois de um longo e constrangedor silêncio, falei:
_Posso, ao menos, visitar o sótão pela última vez?
_Pode sim meu filho. Fique o tempo que quiser, não precisa se despedir quando for embora. Boa sorte Plínio, e viva a vida!
Deu-me um forte abraço e se dirigiu ao seu quarto. Eu fui para a escada e subi para o sótão. Chegando lá, me sentei em frente à escrivaninha onde estava o notebook de Anete. Olhando para ele uma onda de lembranças invadiu minha cabeça. Lembrei-me do dia em que a conheci na festa de aniversário de 35 anos do Miranda aqui no casarão. Uma amiga em comum, advogada como eu, foi convidada e eu a acompanhei. Fiquei muito impressionado com a beleza de Anete, e sua visível fragilidade. Ela era miúda, magra, de pele branca, imaculadamente branca, tinha um olhar triste e distante. Soube pela minha amiga que Anete passava, constantemente, por períodos depressivos e algumas vezes teve que ser internada. Na época que a conheci ela estava saindo de uma crise e estava se restabelecendo. Comecei a visitá-la assiduamente. Todos da família aprovaram minha presença e diziam que Anete melhorara bastante depois de me conhecer. Em três meses de visitas começamos a namorar, depois de um ano e meio de namoro noivamos, e quando faltava uma semana para nosso casamento ela se foi. Neste dia ela me telefonou, dizendo que queria falar comigo urgentemente. Cheguei ao casarão às sete da noite, era um domingo, domingo de carnaval. Fui até o sótão, ela estava terminando uma pintura. Caminhei até ela para beijá-la, mas ela se recusou a me beijar. Pediu que eu sentasse e falou, sem nenhuma cerimônia, que não iria se casar comigo, e que estava apaixonada por outro. Achei que ela estivesse brincando, contudo, era verdade. Tentei de todas as formas convencê-la do erro que estava cometendo e implorei para que ela mudasse de ideia e dissesse quem era o outro. Ela não disse. Perguntei se ela já tinha anunciado sua decisão aos familiares dela, ela disse que ainda não tinha falado nada a ninguém. Pedi que ela esperasse até o outro dia para dizer, que ficasse a noite pensando melhor, e só então falasse a sua mãe. Ela respondeu que a decisão não mudaria, mas, prometeu que só avisaria aos pais no outro dia e pediu que eu fosse embora. Eu desci as escadas em sua companhia, e fiz questão de passar para ver dona Zuleica, e para falar com o Miranda, conversamos um pouco e me despedi. Pedi que não me acompanhassem até o portão. Quando estava lá embaixo, fingi que saia, porém, não saí. Deixei o portão de madeira escorado em uma pedra, para que ele não batesse, se isso acontecesse, ele, o portão, só abriria com a chave. Fui até o pequeno portão e passei para o lado do sebo. Fiquei escondido no jardim, num local que conseguia ver as luzes acesas dos cômodos acima. Esperei por quase cinco horas. A cada hora que passava minha cólera aumentava. Quando todas as luzes se apagaram, ficando somente a luz do sótão acesa e um profundo silêncio se estabeleceu na casa, eu voltei pelo portãozinho e subi as escadas sorrateiramente, como um gatuno. Fui até o sótão, eu podia sentir o gosto amargo do ciúme descendo pela minha garganta e envenenando meu coração. Abri a porta do quarto e vi Anete olhando o céu estrelado pela grande janela do quarto. Seu olhar parecia perdido. Ela estava parecendo entorpecida e não percebeu a minha chegada. Cheguei bem perto dela, tapei sua boca com minha mão, ela tentou reagir, no entanto, a diferença física entre nós é muito grande, e dava para notar que ela tinha tomado uma forte dose de seu remédio, que a deixava letárgica. Quebrei seu pescoço, como quem quebra um graveto, um pequeno estalo se ouviu seguido de um baixo e agonizante suspiro. Anete estava morta. Deitei-a na cama, escrevi uma mensagem de despedida no seu notebook, assinei o nome de Anete, peguei-a no colo e a joguei de cabeça para baixo pela janela. Ela caiu, sem fazer muito barulho, em cima da horta. Desci as escadas, com a mesma cautela de como subi, só que um pouco mais rápido, cheguei ao portão de madeira, abri e fechei-o com cuidado. A rua estava escura e deserta, parti para minha casa. Pouco depois recebi o telefonema desesperado de dona Zuleica avisando sobre o acontecido. Nunca desconfiaram de mim. Eu realmente amava Anete, mas não suportaria vê-la nos braços de outro. Fui tirado de meu devaneio pelas batidas na porta. Era o Miranda. Ele veio perguntar se estava tudo bem e dizer que não concordava com a decisão de sua mãe e que eu poderia visitá-lo todas as vezes que me conviesse. Agradeci, sabendo que com toda certeza nunca mais veria o Miranda, isso me deu um grande prazer. Fiquei ali por mais um tempo escutando as patéticas poesias do meu quase cunhado. Antes de sair comentei que ele estava perdendo tempo e já deveria ter lançado um livro com seus poemas. “Venderiam como água, são muito bons” disse a ele. Ele acreditou e seu estufou todo como um pavão. Grandíssimo idiota, isso sim ele é. Despedi-me aliviado e sentindo que nunca mais voltaria ao casarão da Rua São Cristovão. Andei pela rua que estava bastante movimentada, era terça de carnaval, e muitos foliões estavam ali para ver o bloco rasgadinho. O sol das quatro da tarde amornava o ambiente. Desci mais um pouco e dobrei a direita para pegar a Rua Laranjeiras mais a frente. Quando virei à esquina, um grande cachorro correu em minha direção. Não me assustei, e ele passou por mim sem fazer nada, não tenho medo de bichos, a não ser do bicho homem. O homem é o mais perigoso dos animais. Nunca se esqueçam disso.