Porque os Loucos Também Sofrem

“... Porque todas as estrelas estão desaparecendo

Apenas tente não se preocupar, você as verá algum dia

Pegue o que você precisa e siga o seu caminho

E faça o seu coração parar de chorar...”

(Oasis – Stop Crying Your Heart Out)

Definitivamente não gostei da idéia logo de início, mas eram os meus tempos de crise financeira... e digamos que as pessoas não contratavam muitos enfermeiros particulares. Enfermeiras eles até contratavam, mas enfermeirOS... nem tanto. O que acaba tornando minha vida difícil, até que eu conseguisse emprego em algum hospital público; o que não é nada satisfatório para o meu bolso, mas que já é alguma coisa; ou o quê eu almejava, ser empregado em uma rede particular.

A oferta que me fizeram era para tomar conta de um paciente com o equilíbrio mental em colapso, como dizia sua psiquiatra. Ele estava em seus últimos momentos, foi o que me disse o empregador, câncer. Ótimo! Perceba o sarcasmo em minha voz: Ó-ti-mo! ... Agora tinha que ser babá de um maluco, provavelmente seria um velho gagá que tinha incontinência urinária e intestinal... Sim eu sou pessimista. Não precisa me dizer. Mas eu não me incomodo em ter que trocar fraldas, sou um enfermeiro, me acostumei com isso. Mas não significa que eu tenho que gostar disso... O que realmente me incomodava era o fato de ter que ir para uma cidadezinha do interior, e que deveria dormir no trabalho. Não gostava da idéia, mas não pude recusar. 800 pila por semana, sem despesas com alimentação ou moradia; durante o tempo que o maluco estivesse vivo... Ele vai morrer logo, o trabalho vai ser rápido. Devo confessar que esse foi um dos poucos pensamentos otimistas que tive na época... Minha noiva ficou meio receosa com a distância, mas não pude recusar aquele dinheiro. Aceitei.

Quando o motorista do empregador me deixou no lugar eu não acreditei, primeiro porque levou cinco minutos de carro para, passando do portão de entrada da propriedade, chegar até a porta da casa. Depois porque a casa mais parecia um shopping. Fiquei extremamente estarrecido. Pude sentir quando meu queixo chegou ao chão. Apenas trinta quartos, uma piscina do tamanho do meu apartamento, o quê não seria tão inimaginável assim, quadras esportivas, e uma lista de coisas que realmente não adianta falar... Conheci meu paciente, o empregador, que era irmão mais velho dele, apresentou-me a ele depois de meia hora procurando ele pela mansão... fomos encontrá-lo no telhado... Infelizmente trajando apenas a cueca... Felizmente trajando pelo menos a cueca... Segundo o próprio, ele estava procurando por uma toupeira lá em cima. Já dá pra sentir o nível do que eu iria passar.

Ele era totalmente diferente do que eu imaginava, não era velho, tinha trinta e quatro anos, mas já apresentava alguns fios grisalhos em sua cabeleira que um dia possuiu apenas fios pretos. Ele não era muito alto, 1,74 m de altura, atingia a altura de meus ombros. Setenta e dois quilos. Seus olhos eram de um castanho confuso, ora claro como ouro ora escuro como a noite. Não era gordo, mas não posso dizer que ele era magro. Devo dizer que não fui muito com a cara dele de início. E muito menos ele foi com a minha. Quando Diego, o irmão dele, nos apresentou, ele mostrou-me a língua e correu de novo para o telhado. Ah... sim... seu nome? ... Seu nome era... Seu nome é Ricardo... Ricardo Carpello... e seus maledetos oito anos de idade.

Nas primeiras semanas ficou cada um na sua, ele ficava brincando com alguns brinquedos, ou desenhando alguma coisa, assistia desenhos na TV, ou procurava pela toupeira... Eu ficava apenas vigiando... E correndo para impedir que ele subisse no telhado... O pior momento era o horário dos remédios... Era praticamente uma luta fazê-lo abrir a boca... Por diversas vezes ele ficou sem tomar os remédios, só o irmão dele conseguia fazê-lo tomar, quando chegava do trabalho... Por quê eu não conseguia fazê-lo tomar as medicações? . . . É isso que você quer saber?... Ha ha ha... Tente segurar uma criança de oito anos e dar-lhe xaropes ou pílulas... Agora imagine que essa criança tem pêlos no peito e na barriga, porque está presa no corpanzil de um homem; um cavalo, diga-se de passagem; de 34 anos de idade... Fiquei com o olho roxo na primeira semana... A outra luta era fazê-lo ficar vestido... Essa eu ganhava, dizendo que se seu irmão trouxesse visitas ele levaria uma bronca... Fora isso, era tudo calmo, na medida do possível. Quando dava sete da noite ele ficava na sala principal sentado no chão desenhando, esperando o irmão chegar. Pulava de alegria. Depois do jantar ele ia tomar banho, graças a deus ele fazia isso sozinho, e sabia usar o banheiro também... Glória a deus senhor... A última luta do dia era fazê-lo escovar os dentes... Depois lia uma historinha qualquer e ele só acordava de novo pela manhã... Ah não... quase me esqueço... A pior luta era quando eu tinha que fazer a barba dele. Ele sempre saía com cortes no rosto e eu com cortes nos dedos... Sempre!

Com o passar do tempo fomos nos acostumando um com o outro, passei a brincar com ele, fazê-lo companhia. Ele me fazia rir pacas com seu jeito medroso de ser. Ele não botava o pé para fora de casa, dizia que era perigoso. Um dos dias que eu mais ri na vida foi quando encontramos a tal toupeira... ou melhor... ‘o’ tal ‘Toupeira’... Foi a primeira vez que eu vi o bichano, caí na gargalhada... Eu achando que era uma das loucuras dele, procurar a toupeira no telhado, mas foi lá que o achamos... ‘Toupeira’ era o gato dele... Pobre gato, eu via os olhos do coitado sendo repuxados sempre que Ricardo ‘acariciava’ fortemente a cabeça do animal... Ele sempre saía com os braços completamente arranhados, mas nunca aprendia... Eu realmente esquecia que ele era um homem feito. Ele em meus olhos não passava de uma criança. Quando a ficha caía, eu me perguntava como ele chegou àquele ponto de loucura. Conversei com alguns empregados. Fiquei sabendo que ele era um arquiteto, trabalhava na construtora do irmão. Mas só fiquei sabendo da história completa pelo irmão dele, que passou a me considerar de grande importância, pela afinidade que Ricardo teve comigo.

Ele realmente foi um arquiteto, mas era um sócio e não um empregado do irmão, foi ele quem desenhou toda a planta daquela casa, e ele quem a decorou. Um ano antes de eu ir trabalhar lá ele foi diagnosticado com câncer. Já em metástase, preferiu não receber o tratamento. Entrou em depressão, abarrotava-se de medicações. Depois de três meses diagnosticado, começou a ter lapsos: de repente acordava feliz algumas manhãs, começava a fazer bobagens. Com o tempo os lapsos foram aumentando. Psicólogos não resolveram. Nem psiquiatras, as medicações funcionaram por um tempo, mas depois passaram a não adiantar. Até que ele perdeu o irmão dele para o lapso... E ganhou um filho.

Não posso dizer que era sempre tudo calmo. Às vezes ele tinha uns ataques de fúria, não sei dizer se era fúria ou pânico. Não chegava a destruir nada ou a agredir alguém. Mas ele corria para o quarto e se trancava, ficava gritando e esperneando. Nos primeiros acessos de raiva eu não chegava perto dele, tive medo. Mas com o tempo a gente vai se adaptando. O engraçado é que na primeira vez que eu resolvi fazer alguma coisa, assim que eu entrei no quarto, a primeira coisa que ele fez foi sair correndo debaixo da cama e me abraçar. Simplesmente sentei-me em sua cama e ele ficou sentado ao meu lado, sem falar nada, apenas segurava a minha mão. Sempre que ele tinha um ataque de pânico eu fazia isso, e era sempre do mesmo jeito. Até hoje não sei por que ele ficava daquele jeito. Dizia escutar vozes. Mas fico feliz de saber que podia acalmá-lo.

Momentos tristes? Claro que houve... E como... Lembro-me quando encontraram o ‘Toupeira’ morto no quintal, ninguém sabe como o gato morreu, o encontraram parcialmente esmagado. Acho que ele foi atropelado pelo Diego, ou por algum dos motoristas, ou alguém deixou alguma coisa cair em cima, certamente foi acidental, mas foi um estrago. Não deixei ele ver o corpo, coloquei dentro de uma caixa de sapatos... Aquela foi a primeira vez que eu consegui o fazer sair da casa para o quintal... Cavamos um buraco no quintal e rezamos uma missa (três “Ave Maria” e um “Pai Nosso”, além de pedir a Deus que protegesse a alma do bichano). Ele passou um mês inteiro entristecido. Fiquei espantado quando uma semana depois da morte do gato, acordei de manhã e o vi fora de casa, no quintal, sozinho, colocando uma vela na pedra que havíamos utilizado para marcar o túmulo do ‘Toupeira’. Depois disso consegui convencê-lo aos poucos a sair. O irmão dele ficou espantado de alegria quando acordou num domingo e viu Ricardo brincando na piscina. Detesto sol, por isso fiquei apenas vigiando ele, mas aparentemente ele sabia nadar perfeitamente... Naquele domingo Diego e Ricardo pareciam ser pai e filho e não irmãos... Exceto quando os dois resolveram jogar-me na piscina... Aí eles pareceram dois irmãos... dois belos duns felá duma puta.

Momentos felizes? ... Incontáveis... Acho que todo dia era capaz de me fazer uma pessoa feliz. Mas a imagem que não me sai da cabeça é a dele cantando Oasis, isso ele lembrava, como falar inglês fluentemente. Não sei se ele sabia que “Stop crying your heart out” eram do Oasis, nem sei de onde ele havia escutado, provavelmente do radinho de pilha da Rita. Era junho de 2002 e estava próximo do aniversário dele. Resolvi. Comprei-lhe o CD “Heathen Chemistry”. Arrependi-me amargamente. Ele conseguia escutar esta música quinze vezes em uma hora. Todos estavam enlouquecendo. Mas devo confessar. Nunca o vi tão feliz como quando ele cantava aquele refrão. Quando ele ganhou o CD ele não sabia que aquela música estava entre as que escutaria, quando ele ouviu-a ele me abraçou como nunca antes. Senti-me como um pai. Amava aquele garoto como a um filho. Daria minha vida sem pensar duas vezes pela vida daquele moleque.

Diego é casado. Cristiana é o nome dela. Devo confessar que ela era estranhíssima. Parecia nem residir na casa. A via pouquíssimas vezes. Ela não suportava Ricardo, e ele sabia disso, por isso fugia dela sempre que pensava que ela pudesse estar próxima. Na verdade não sei o quê ela sentia acerca ele... De quando em vez eu escutava o casal discutindo. Ela queria colocar Ricardo num hospício. Ou interná-lo de vez no hospital. Lembro que uma vez Diego deu-lhe um tapa na cara por causa dos insultos. Mas eles sempre faziam as pazes. Os filhos deles já eram crescidos e moravam na capital.

O dia mais estranho de todos? ... Nunca esquecerei... 27 de janeiro de 2003... O dia em que finalmente conheci Ricardo Carpello... Acordei, arrumei-me e dirigi-me para o quarto de Ricardo, não o encontrei. Desci para o andar térreo, fui à cozinha. O encontrei. Estava vestido. Camisa social azul de botões, estampa listrada( listras azul-marinho), calça, jeans preto, cinto, preto, e sapatos, da cor do cinto. Sentado à mesa, tomando café numa xícara de porcelana, com um pires embaixo. E o mais incrível, lendo jornal, verdadeiramente lendo.

- Não sei dizer quem é você... Sei que seu nome é Júlio Cézar... Sinto-me feliz perto de você, mas não sei o porquê... Diria que é amor a primeira vista... Mas sei que não estou excitado. E tenho certeza absoluta de que não sou gay... Então eu estou sim realmente confuso. – Ele levantou-se da cadeira e estendeu a mão. – Muito prazer... Meu nome é Ricardo. – Seu sorriso era simpático não tanto quanto o de oito anos de idade, mas simpático.

Fiquei chocado, boquiaberto, sem palavras, sem qualquer reação. Tudo em que pude pensar foi: - Prazer... Sou Júlio Cézar... Seu irmão me... me... me contratou para s... s... ser seu enfermeiro particular. – E apertei a áspera mão dele.

- Ah! ... Agora recordo dele ter me falado desse assunto... Mas já disse a ele que não eram necessárias estas coisas... O Diego não tem jeito... De qualquer forma sinto muito... Tenho que ir... Não posso me atrasar para o trabalho.

- C... c... como assim? ... Você vai trabalhar?

- Ué! ... E qual seria o problema nisso?

- É que você está com uma doença séria...

- Sim, eu sei que estou com câncer... Obrigado por me lembrar de que logo logo irei morrer... Você tem razão! É melhor eu ficar aqui em casa e esperar a morte chegar... Ou não... Posso fazer melhor... Faça-me o favor de ir à cozinha e conseguir uma faca para mim, vou ligando as torneiras da banheira.

- S... s... sinto muito s... s... senhor... Não era a minha intenção aborrecê-lo ou chateá-lo... é qu...

- Ha ha ha... Não se acanhe rapaz... Estou apenas brincando... Só o que eu quis dizer é que não adianta viver para a doença... Ela irá me levar mais cedo ou mais tarde... Mas eu não posso ficar parado esperando ela me alcançar... A gente segue em frente... Devemos morrer pela doença, ao invés de vivermos doentes. – Ele procurou as chaves de seu carro, mas não encontrou-as. Eu não perdi tempo. Liguei para o celular de Diego e o chamei.

Ele pareceu estar desesperado, há tempos isso não acontecia. Ele me mandou enrolá-lo, não deixar que ele saísse. Fui atrás de Ricardo. – Algum problema senhor?

- Não consigo encontrar as chaves de meu carro... Ô Rita! ... Ô Rita!!! ... - A empregada chegou as pressas. – Você viu as chaves do meu carro?!

- O Dr. Diego usou o seu carro para ir trabalhar hoje. O carro dele está na oficina. – A mulher surpreendeu-me. Ela já deveria estar acostumada com aquilo. Mas pela cara de espanto dela isso não acontecia há muito tempo.

- Ai ai... O Diego não tem jeito... Rita... Faça-me o favor de chamar um táxi. Ok?

- Sim Doutor Ricardo, só um momento. – A mulher saiu do recinto e foi chamar Cristiana.

Ricardo puxou assunto comigo ficamos conversando por alguns instantes. Ele certamente não era mais aquela criancinha, mas também não parecia totalmente são. O jeito como ele falava era sempre sarcástico e exagerado, com risadas forçadas e gargalhadas escandalosas. Era como se algo estivesse realmente o perturbando. Conversamos pouco, até Cristiana chegar à sala e assumir a dianteira na conversa. Rita trouxe um copo d’água e remédios, disse que eram os normais de todo dia, mas eram calmantes. Dos fortes. Antes que Diego conseguisse chegar a casa; não que seu escritório, na capital, ficasse a menos de uma hora de distância da casa; Ricardo já havia pegado no sono, no sofá mesmo. Chamei o jardineiro e carregamo-lo escada acima. Tirei apenas os sapatos dele, o resto ele se virava depois.

Quando Dr. Diego chegou, ele conversou comigo sobre como era para eu proceder se acontecesse outros surtos desse. A psiquiatra disse para jamais revelar a Ricardo de seus colapsos. Ou isso poderia destruir completamente sua mente. Isso se ele acreditasse, o que seria muito improvável. Ele não se lembrava de nada, ou quase nada, era como se ambas as mentes fossem completamente distintas. E provavelmente o eram.

No dia seguinte despertou com oito anos de idade novamente. Devo confessar que me senti aliviado. Sentia falta de meu amigo, de meu filho... Devo confessar que até hoje sinto nojo de mim mesmo por ter pensado nisso. Nas semanas seguintes esses colapsos aconteceram novamente, eu pude o conhecer melhor. Ele se lembrava de mim, desde aquele primeiro dia em que ‘retornou’ era como se duas mentes distintas compartilhassem um corpo sem se conhecerem. Era cada vez mais difícil enrolá-lo, no terceiro dia ele não tomou as medicações que Rita trouxera, ele se lembrava que adormecia sempre que as tomava. Certo dia eu não me agüentei e contei a verdade.

- Ha ha ha... Você tem um senso de humor ótimo. Você realmente acha que eu não lembraria se andasse de cueca por aí e ficasse desenhando no chão. – Eu mostrei a ele os desenhos que ele fazia, mas ele não reconheceu. Mesmo tendo sua assinatura, infantil, ele disse que estávamos tentando enganá-lo.

- Hoje é quinta não é?

-É.

- Então me diga que dia foi ontem? ... O que você fez ontem?

- Dãh! Ontem foi quarta! ... Você me contou sobre a sua noiva e que ainda está marcado o casamen... – O próprio Ricardo interrompeu sua fala. Eu o fitei encarecidamente, demonstrando dó, dor, pena. Ele lembrara-se que aquela conversa nós havíamos tido em uma segunda e não em uma quarta. Ele lembrou-se disso porque deixei em ênfase que Lara, minha noiva, queria se casar em uma segunda feira como era naquele dia. – Não! Não! Eu não estou louco... Vocês estão fazendo isso! Hoje... Hoje não é quinta... Hoje... é? É? – Lágrimas verteram de seus olhos. Lágrimas verteram de meus olhos. Eu tentei tocá-lo no ombro para abraçá-lo, para acalmá-lo. Mas ele esquivou-se, como se não me conhecesse como alguém afetivo... Não como a um amigo. Ele correu, não fui atrás dele. Ninguém foi. Poderia ter dito que fomos tentar ajudá-lo. Mas isso não aconteceu. Ele correu. Avisei ao irmão dele.

Quando Diego chegou tentei explicar-me. Ele não escutou uma palavra do que eu disse, sequer tentou. Assim que passou pela porta de entrada desferiu um soco em cheio na minha bochecha. Caí feito jaca podre. Ele gritou de fúria e me demitiu. Eu sabia que ele iria fazer isso. Fui totalmente anti-profissional. Mas não me arrependo, prefiro ser humano a ser profissional. Ricardo apareceu no dia seguinte, aparentemente não havia saído da propriedade, tinha apenas pegado um cavalo para cavalgar um pouco. Ele retornou e conversou com seu irmão. Não sei do que eles falavam, não fiquei tempo suficiente para escutar ou me despedir. O motorista levou-me de volta para minha casa.

Cheguei arrasado. Trabalhei com ele por um ano e sete meses. Era realmente como perder um amigo, como perder um filho. Minha esposa me consolou. Mas pelo menos eu já estava com uma boa chance de conseguir uma vaga num hospital particular aqui na capital. Mas não consegui. Sete meses se passaram, eu ainda estava desempregado, na verdade conseguia uns clientes de vez em quando, mas nada duradouro.

Não tive nenhuma notícia de Ricardo esse tempo inteiro. Até que certo dia ele bateu em minha porta. Minha esposa quem atendeu a porta. Quando ela gritou que eu tinha visitas eu logo pensei que seria minha mãe ou algum de meus irmãos. Quando cheguei à porta, minhas pernas estancaram. Ele me encarou com uma face entristecida. Sinceramente eu não sabia se quem me via era o homem ou o menino. Num ímpeto ele abraçou-me, fortemente. Certamente não era o garoto. Ele tremia, mais do que eu jamais havia o visto tremer em um de seus ataques de pânico. Ele me abraçou por quase cinco minutos inteiros.

Quando me soltou pude ver as lágrimas que escorriam de sua face, não agüentei, minhas lágrimas também fugiram. Convidei-o a entrar, minha casa era humilde, e ainda o é se alguém quer saber. Apresentei-lhe minha esposa, que estava confusa com a cena, ela sabia da história toda e mesmo assim não entendia o quê se passava.

Ele sentou-se no sofá e contou-me. Estava fazendo tratamento psiquiátrico. Não era tão eficaz quanto ele desejava que fosse. Ele disse que as terapias estavam fazendo com que ele lembrasse das memórias do garoto, memórias antigas, recentes, era tudo muito confuso. Mas não acontecia o mesmo no inverso. A terapeuta mandou-o tentar não lembrar fora do consultório. Eu nunca esquecerei as palavras dele: - De acordo com a Dra. Flávia minha mente criou a personalidade do garoto para fugir de algo que me atormentava, eu estava em profunda depressão, eu estava infeliz. Eu sei disso... Eu sei disso... Minha mente caiu no esquecimento... Minha mente se dissolveu na tristeza e caiu na ilusão de uma infância. Eu não consigo me livrar do garoto, e provavelmente nunca conseguirei... Ela disse que não, que não foi necessariamente você quem me trouxe de volta... Muita coisa poderia ter trago minha mente de volta... Mas eu lembro dos sentimentos do garoto, antes eram tristes, frios, mas eu também senti alegria... Todos dizem que não... Mas eu sei que foi você... Mas eu me lembro de você... ‘Ele!’ se lembra de você... E sente sua falta... Mais do que tudo... Você conseguiu você... destruiu a tristeza que me prendia dentro dele... Sei que jamais me livrarei daquele garoto... Mas não quero mais... Mas o garoto precisa de você... ‘Eu!’ preciso de você... E é por isso que eu estou aqui... Eu realmente queria que você voltasse a trabalhar para mim... A me ajudar... A me salvar.

Eu poderia dizer que falei não. Que disse a ele que o ajudaria sem que ele me pagasse, que seria seu amigo. Mas eu apenas aceitei o emprego. Não poderia desperdiçar o dinheiro de que eu tanto precisava.

Os meses seguintes foram muito bons. O garoto voltava cada vez menos. Mas isso não fazia com que eu deixasse de me aproximar de Ricardo. Ficamos grandes amigos. Tanto como quando eu cuidava do garoto. Mas, quando o garoto voltava, eu não ficava triste. Eu apenas ouvia-o cantar o refrão que ele tanto gostava. Desafinadamente, mas era simplesmente feliz. Sinto-me até mal em pensar que recebi dinheiro para aquilo. Às vezes alugávamos filme para ele assistir. Ele sabia as falas decoradas de “A Viagem de Chihiro”. Sempre assistíamos a este filme... posso dizer que até hoje não entendo bulhufas da história, mas não me importava.

Até maio de 2004 eu não havia visto nenhum sintoma da doença. Eu até me esquecera que ele tinha câncer. Estávamos no parque, em sua fase criança. Tomando sorvete. Um enjôo repentino atingiu-lhe a barriga e ele vomitou sangue. Eu me desesperei, levei ele para casa. Diego nos levou até um hospital na capital. Seu estômago estava completamente devastado pelo câncer. Seu corpo inteiro já estava sentindo sutil ou violentamente os reflexos da doença. Nesse dia eu chorei. Como nunca antes. Voltamos para casa no dia seguinte. Porém a doença, quando deixa de ser silenciosa tornasse mortal. Ele emagreceu freneticamente em menos de um mês. Foi internado. Via-o perder a vitalidade a cada dia. Pessoas disseram que não queriam lembrar-se dele com aquela aparência. Não cabe a mim revelar vossa identidade. Mas cabe a mim dizer que não temo vê-lo daquela forma. Mostra o quanto ele lutou. E eu jamais o deixaria em um momento tão duro.

O estado de fraqueza e os entorpecentes faziam-no adormecer facilmente e suas personalidades oscilavam de maneira perturbadora para qualquer um. Não me importei. Continuei ao lado dele. Segurando sua mão. Já delirava demais quando morreu. Suas últimas palavras lúcidas foram dadas pelo garoto: - Você promete nunca sair do meu lado? – Eu chorei muito, mas respondi fazendo que sim com a cabeça. Ele fechou os olhos por alguns segundos e depois reabriu. – Obrigado. Você é meu herói. – Um sorriso fraco saiu da boca dele, mas foi mais sincero do que eu jamais poderia sentir que alguém já fôra comigo. Chorei, chorei de tristeza, chorei porque me lembrei de outra conversa que tivemos e respondi.

- Não... Você é o meu herói.

Ele morreu enquanto dormia. Apertando minha mão. Lutou o quanto pôde. Teve arrependimentos, todos temos. Teve alegria, teve tristezas, mas teve com quem compartilhar tudo. Sei que ele está em um lugar melhor, tenho certeza. Tenho certeza que um dia irei reencontrá-lo, tenho certeza de que irei reencontrar aos dois. Eles nunca estarão sozinhos enquanto estiverem juntos, eles nunca estarão sozinhos porque estarão sempre comigo. Sempre. Porque eu prometi sempre está ao lado deles. Dele. Do meu grande herói. Do meu grande exemplo de vida. Do meu grande e melhor amigo. Como havia prometido-lhe uma vez. Dei ao meu primeiro filho o nome de Ricardo.

Este não é o Fim, é apenas o Iníco.

“As estrelas morrem, mas o seu brilho continua iluminando o céu por muitos anos para nos guiar, até que outra estrela nasce e mostra o seu brilho para nos guiar quando a antiga se apagar. E assim são os heróis mesmo depois de mortos continuaram nos guiando no caminho certo, até que outro herói surja para guiar-nos no rumo certo quando o antigo cair no esquecimento. E assim são os amigos... Com a diferença que estes nunca se apagarão... Com a diferença de que estes nunca serão esquecidos... NUNCA”

(Ricardo Dias Carpello)

Em memória de

Ricardo Dias Carpello *1967|*2001 ---- +2004.

Grande amigo. Grande irmão. Grande Herói.