Uma Folha

UMA FOLHA

(Renan Gonçalves Flores)

Meu nome é Alex. Sou escritor. Gosto de pizza, praia e King. O guitarrista. Moro na casa de minha namorada. O nome dela é Janie. Temos um cachorro chamado Milo.

Leio muito. Escrevo muito. Mas até agora só tenho um livro de contos policiais publicado. É essa minha especialidade. Não sou fã de Agatha Christie. Prefiro J. K. O escritor norte-americano, não o presidente.

Há uma semana recebi um desafio: escrever uma boa história em apenas uma folha. Agora são 14h23 do último dia e eu não escrevi nada. Tive algumas poucas boas idéias, muitas ruins, mas nenhuma que pudesse ser escrita em menos de cinco folhas. Arial 10, espaçamento simples.

Pensei que seria fácil, afinal de contas eu sou escritor. Escrevo contos e romances, não crônicas. Odeio crônicas. Nunca recusei um desafio antes, e não vai ser agora que vou desistir. Já são 14h25 e tudo o que tenho são dezenas de rascunhos inúteis.

...

15h15.

Estou trancado em meu estúdio desde as 08h00 da manhã. Janie saiu pra trabalhar as 07h00. Prometi a mim mesmo que não ia sair daqui enquanto não conseguisse uma boa história. Uma BOA história.

Sem banho, sem comer, sem beber. Nem sequer escovei os dentes. Sem contato com o mundo externo. Sem parar de pensar, me focar. Concentração. Estou concentrado. Muito concentrado. Tão concentrado que não consigo sequer escrever essa merda que qualquer aluno do ensino médio conseguiria. Concentração. Estou concentrado.

Faltei no trabalho, não atendi ao telefone, e Janie é insistente! Nada de computador ou máquina de escrever. Shakespeare nunca teve isso. Não sou nenhum Shakespeare, tampouco dramaturgo. Escrevo contos. Até agora não escrevi nada.

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16h05. Não é somente difícil, é quase impossível. Nunca pensei que ia ficar tão envolvido por isso. Por que não consigo fazer essa merda? Ou então desistir de uma vez? É só um desafiozinho idiota, nada de mais. Uma simples confirmação de minha completa incompetência, só isso. Nada de mais.

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16h30. Cortei os fios do telefone. Aquela merda não parava de tocar. Me ligaram no celular. Janie 8 vezes, meu chefe 10. Quebrei. Não agüentava a droga daquela musiquinha. Aproveitei que estava com a tesoura e também cortei o cabo da televisão e do rádio. Medo de cair em tentação. Preciso me concentrar. Preciso de silêncio. Preciso de silêncio e a merda do cachorro não cala a boca. Milo! Vem aqui garoto!

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23h55. Desisto. Não sirvo pra isso. Não sirvo mesmo. Talvez eu até tivesse conseguido se aquela vaca da Janie não ficasse batendo na porta que nem uma louca. Gritava algo sobre o cachorro estar mutilado no quintal de casa. Merda! Parece até que nunca viu bicho morto. Quantos outros cachorros atropelados já não vimos na rodovia aqui perto de casa? Vaca. Mas agora tenho certeza de que não vai mais incomodar, não é Janie? Você vai ficar quietinha aqui do meu lado, não é meu bem? Quietinha. Sem reclamar. Sem falar. Sem respirar. Preciso de silêncio. Silêncio pra quê?

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23h59. Admito: sou um escritor de merda que não consegue sequer escrever uma história numa única folha. Admito minha incapacidade. Mas e agora, o que eu faço com o corpo?

Renan Gonçalves Flores
Enviado por Renan Gonçalves Flores em 10/01/2012
Código do texto: T3433709
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