Turbulência
Militares enxugando o suor da testa. Tráfego aéreo congestionado. Centopéicas filas de espera nos aeroportos. Telefonemas confidenciais sussurrados nos corredores. Ademir, controlador de vôo veterano, acompanhava distraído alguns comentários na sala de controle.
- Precisamos desmilitarizar!!!
- Você está louco??? E a pressão do governo???
- Dane-se o governo!
- Mas e o apoio político para o laudo oficial?
- Putz! Se descobrirem o caos que está isso aqui...
- Nem brinca!
- Além disso...
O oficial gordo, de óculos apoiados na ponta do nariz, parou. A algazarra das discussões se calou para que o atrito do salto alto fosse ouvido. Cabelos loiros compridos, curvas desconhecidas naquele setor e olhos azulados. O cubículo, entupido de machos suados, estranhava a chegada do perfume suave.
- Olá!
- OLÁ!!! – respondeu em coro a parede masculina.
- Sou a nova estagiária do controle de vôo.
- Sra... Isabela, não é? – antecipou-se o supervisor.
- Isso. Começo hoje o treinamento.
- Seu instrutor será o Ademir. – Ademir!!!
- Pois não?
- Esta é a Isa. Posso chamá-la assim, né?
- Isabela está ótimo.
- Er..hum...bom... Ela é responsabilidade sua, Ademir! Boa sorte! – ironizou.
Ademir sabia que novas contratações seriam feitas, mas não conseguia disfarçar o desconforto.
- Está tudo bem?
- Sim...bem...é que não sabia que contratavam mulheres, principalmente nesse período turbulento.
- Engraçado...
- O quê?
- “Período turbulento”. Trocadilho sugestivo para um controlador de vôo, não é?
- Bom... Vamos começar, então?
- Claro. Ademir, não é?
- ... Er... isso mesmo.
Poderia ser mulher, criança, travesti, velho, magro, gordo, amarelo, índio, anão. Não importava. O que angustiava Ademir era seu sorriso brilhante, o olhar oceânico, a forma como elevava a sobrancelha entre cada cruzada de coxa...e o corpo. Que corpo! Imaginava Isabela surfando com as amigas da faculdade, rebolando até se acabar em salões de forró, bebendo cerveja e fumando com os colegas da capoeira. Menos naquela cabine do controle.
- Pode sentar aqui.
- Obrigada.
- Este é o computador que controla parte dos vôos.
- Perfeito.
- Cada um desses pontos indica a posição das aeronaves no espaço aéreo.
- Certo.
- Nesse monitor aqui você acompanha as decolagens e pousos.
- Ok.
A aula sobre botões, relatórios, planilhas, radares, pontos-cegos e códigos de comunicação fazia o relógio correr acelerado. Ademir, acostumado com a usual morosidade de sua função, não percebera o anoitecer até que Isabela levantou-se da cadeira.
- Quer mais café?
- Quero, sim, Sra. Isabela. Obrigado.
- Pode me chamar de Isa.
- Tá bom... Isa.
- Melhor assim, não acha?
- Acho...
- Aliás, todo mundo já foi embora. Você fica sozinho aqui a noite toda?
- Na verdade, não. Mas com esses probleminhas de congestionamento aéreo e falta de funcionários acabei ficando responsável pelos plantões da semana.
- Melhor pra mim, né?
- Er...hum.. Puro!
- O quê?
- O café.
- Ah, tá. Pronto.
- Obrigado.
Os primeiros trovões podiam ser ouvidos da cabine e a chuva ensaiava o espetáculo. Entre sorrisos cúmplices, Ademir e Isabela percebiam-se na mesma freqüência. Enquanto estudavam os vôos seguintes, Isa assustou-se com um relâmpago mais violento, agarrando a mão do tutor.
- ... Desculpa.
- Tudo bem. Com o tempo você se acostuma com as oscilações meteorológicas na pista.
- Eu sei. Tomara que demore.
- Por quê?
- Sua mão me deixa mais tranqüila.
Ademir dedicava-se à função com inexplicável atitude. Cobrava maior responsabilidade dos colegas de setor e melhores condições de trabalho para a classe. O banco de horas extrapolava a decência trabalhista. Indignava-se quando assistia às críticas violentas condenando a competência dos controladores de vôo e as cansativas esperas. Mas, naquele momento, nada disso parecia incomodá-lo, nem mesmo as luzes do painel. Sob o som da chuva, devolveu o aperto de mão à Isabela com similar pressão, aproximando seu rosto.
- Você é linda, Isa.
- Brigada. Também achei você um coroa “gato” quando entrei na sala.
- Posso beijá-la? – perguntou sem prática, em português clássico.
- Claro que sim... mas...
- O que foi?
- E os computadores?
- Não se preocupe.
Antes que Isabela prolongasse o questionamento, Ademir arrancou os computadores das tomadas, segurou seu corpo jovem e a amou sobre os botões coloridos.
Sem maiores atrasos.