O garoto e o palhaço
Por Ramon Bacelar
Era um dia para não esquecer, daqueles para envergonhar dias passados, intimidar dias futuros e ficar registrado na memória do tempo como o Dia dos dias.
O radiante sorriso do sol matinal semeava seu calor primaveril por barracas, passarelas, tendas e currais com inefável abandono: crianças rosadas com bochechas de picolés e pirulitos, desbravavam nos braços de pais dedicados a colméia humana espalhada como formigas em um tumultuoso balé de vai e vens e ziguezagues; namorados em trens fantasmas, transmutando segundos em eternidades, roubavam um último beijo entre gritos covardes, balbucios de mortos e sangue de corante; velhos safados, como cachorros famintos, hipnotizavam olhos cansados na luxúria de movimentos decadentes de obesas dançarinas exóticas; chimpanzés irritadiços, em atos de insolência matreira, dominavam adestradores com sorrisos peraltas e palhaçadas histéricas; hércules anacrônicos em maiôs coloridos e pulseiras de aço arrebentavam no peito correntes de ferro e blocos de pedra com a revolta e a fúria de maridos traídos; cata-ventos estáticos impacientemente ociosos, aguardavam o retorno do elemento vital, e nos currais laterais, tagareladas de papagaios, uivos de ursos e trombetas elefantinas faziam coro com cocoricós de galinhas e lamentos de bêbados: era um dia para acabar com todos os dias.
-Olha só o tamanho do algodão doce e daquele sorvetão hihihi!!Era aqui papai?
-Aqui o quê filho?
-Que você trabalhava como palhaço?
-Não amor, era na cidade vizinha onde você nasceu.
O pai, como se embriagado por memórias aparentemente extintas, respondia com olhares e vozes distantes.
-E as roupas?
-Que roupas?
-As que você usava, eram fofoconas e coloridonas?
-Sim...
-E as perucas e sapatões e ...
-Nossa, como você é curioso, curioso não...CU-RI-O-SÃO!
-Hihihi...Por que você não trabalha mais como pa...
-Pare de fazer per... Vamos nos divertir.- As palavras afogaram na saliva e congelaram como icebergs verbais.
-Ali é o circo, do outro lado os bichinhos, atrás da gente os doces...huumm, acho que eu quero ir pro parque primeiro. É de qual lado?
Os movimentos dos olhos do garoto não eram suficientes para abarcar as explosões de beleza e encantamento que jorravam dos quatro cantos como uma gigantesca e borbulhante taça de champaigne ao luar: era como se a feira fosse uma fábrica de sonhos, uma imensa estrutura hipnotizante de cores, sons e movimentos que arrastava para seu vórtice de maravilhas as almas de jovens, velhos e crianças.
-Vamos contornar pelo outro lado e....
PEGA LADRÃO!!!, PEGA LADRÃO!!!!
Arrebatado por inesperados gritos de alerta que surfavam na crista de uma imensa onda humana arrastando tudo e todos por onde passava, o garoto, caído e boquiaberto, se viu separado do pai com a rapidez do bater de asas de um beija-flor:
-Papai, papai cadê você?
Serpenteando involuntariamente por entre a vaga de tumulto e excitação, mãos, braços, pernas e cinturas o impulsionavam e conduziam-no pelo labirinto humano para um destino que ele desconhecia, enquanto a pressão e correria perdiam força na medida em que a distância transformava os berros de alerta em frágeis e indistintos farrapos sonoros.
Olhando para os lados como um periscópio cego pensou: ai, ai onde estou?
-Ei, ei!!!! Vocês viram meu pai??
As perguntas do garoto exalaram na acidez da cacofonia sonora que o cercava como muros anti-som.
Correu para um ponto menos tumultuado em busca de auxílio.
-Ei moço, você sabe onde é a entrada para o parque?
-Siga em linha reta, contorne o curral e depois da barraca do atirador de facas encontrará um guarda na guarita.
Com passos curtos, o garoto com um misto de medo, curiosidade e excitação seguia reto quando avistou à sua esquerda a tromba de um elefante, mas antes de contorná-lo foi assustado por um barulho estranho em se tratando de um curral:
-Ei garoto, me ajuda a levantar?
Com os olhos esbugalhados:
-Uuééé tanto lugar para descansar e você acha de deitar logo no estrume!
Estrebuchado na área dos cavalos, um palhaço com as pernas trançadas na cerca estendia o braço.
-Me dá a mão.
-Dou sim, eecaaaaaa que fedor!
-Estrume é assim mesmo.
-Não é o cheiro do estrume... sei lá, parece querosene.
-Eeerrr... Derramei álcool quando fui acender as tochas.
-Tocha de dia pra quê? Achei que você tava com bafo de querosene hihihi.
O palhaço lutava com pernas e palavras.
-Vamos por aqui.
-Você é um palhaço muito engraçado.
-Mas eu nem fiz palhaçada?
-Deitado no estrume de pernas pro ar me pedindo ajuda com essa voz molona de manteiga derretida...
-Q-que tal mudar de assunt...
-E ainda por cima andando desse jeito. Olha só, eu também vou virar palhaço hihihi.
O garoto cambaleava e andava de quatro catando milho: “me ajuuda garoutoou hihihi”
-Isso não tem graça.
-Uuéééé, se não têm graça porque você faz essas palhaçadas?
-Porquê, porq...-O velho cerrou a boca antes que as emoções intimidassem o bom senso.
-Estou com sede.
-Chegamos em casa, entre um pouco que eu te dou água.
Pararam em frente a uma tenda solitária.
-Nossa, que lona esburacada!!!
-Ora ora garoto, não gosta do que é chique e moderno?, Ar condicionado natural!
-Ahahahaahha...
-Vamos entre.
-Já vou ahahahahahaaa...
A gargalhada congelou na garganta quando vislumbrou em cima da estante uma coleção de garrafas.
-Caramba!!
-Que foi, engoliu um sapo?
-Haja tocha para tanto álcool!
O velho abaixou a cabeça cerrando os lábios.
-Tome a água. Quer ver minha coleção de perucas?
-Quero!
O palhaço voltou do quarto carregando um velho baú.
-Essa aqui é feita de...
-Meu deus, que tantão!! Parece um arco íris felpudo hihihi.
-Qual a sua preferida?
-Huuumm...-O garoto pensou, examinando atentamente com dedos na boca- Essa fofona aqui, que é brancona como algodão.
-Sabe... Você daria um ótimo palhaço.
-Por quê?
-Porque essa que você escolheu, a que eu estou “usando”, é cabelo natural.
-Hihihi, mas é bonita, igual a cabeleira do papai.
-Agora vou mostrar os sapat....
-Ííííí...preciso ir!
-Fique mais um pouco.
-É que me perdi do meu pai e ele deve estar me esperando na entrada. Ele também foi palhaço.
Uma súbita vaga de fascínio e curiosidade inundou o velho com a força de uma tempestade de verão.
-Quem é seu pai?
-Ele era conhecido como o Palhaço Gabola.
-Palhaço Gabol...-As palavras penetraram no velho como lanças de gelo: congelando a espinha, vitrificando as retinas.
-Ei, ei...acorda, acorda! O que foi?!!
-Hã...Nada garoto, nada.
-Hihihi, sua maquiagem está engraçada.
-O que têm a minha maquiagem.
-Está toda borrada.
Constrangido, o velho enxugou as lágrimas na barra da camisa.
-Tá na hora de ir.
-Espere que eu tenho uma surpresa. Feche os olhos que eu já volto.
O garoto sentiu um pinicar no nariz e uma leve pressão na nuca:
-Agora abra os olhos.
Em frente do espelho sustentado pelo velho, um imenso nariz de palhaço sorria para o garoto.
-Ebááá, grandão e engraçado, obrigado. Me leve até a saíd... Até a porta chique com ar condicionado hihihi.
-Corra garoto , seu pai deve estar preocupado.
O garoto se despediu com um beijo, mas antes de partir gritou:
-Ei, ei, qual seu nome de palhaço?
O velho hesitou por um momento, mas antes de virar as costas:
-Palhaço Bambola.
O garoto correu, correu, contornou barracas, correu, saltou poças de lama, continuou correndo, pulou, tropeçou, caiu, machucou, levantou e antes de alcançar a guarita:
-Filho, filhooo AQUI!!!
Ao ver o aceno, o garoto correu e voou para o colo do pai.
-Papai!!!
-Mas que susto você me deu rapaz.
-Não tive culpa foi por causa...
-Eu sei. Acabaram pegando o ladrãozinho de galinha. Ei, onde você arranjou esse narigão?
-Seu amigo.
-Amigo, que amigo? – A curiosidade o dominou.
-Seu amigo... O palhaço Bambola.
Ao ouvir o nome, o velho estacou como um carvalho centenário.
-Ei, ei papai, o que foi? Hihihi, tá parecendo o Bambola quando não faz palhaçadas, enxuga as ...
-N-não foi nada, vamos.- O suspiro saiu como a soma do peso de todas as memórias, segredos e recordações.-Vamos pegar um atalho para chegar mais rápido ao parque.
-Huummm... Mudei de idéia.
-Quer ir pra onde?
- Para a tenda dos palhaços.
O pai não retrucou.
-Pai, pai... paiii tá me ouvindo!
-Sim filho, estou.
-Posso te fazer mais uma pergunta.
-Não, não, já estamos chegando.
-Só mais uma, juro, juro!!!
-Tá bom.
-Os palhaços fazem as crianças gargalharem né?
-Sim, eles vivem das risadas e aplausos. Nosso trabalho é fazer as pessoas rirem e serem felizes.
-Sim isso eu sei, mas, mas...
-Fale filho.
-Quem faz o palhaço rir?
Abraçado ao filho com um tímido sorriso estampado na face, de olhos marejados, o velho palhaço suspendeu o pescoço, suspirou e com a voz embargada sussurrou no ouvido do filho:
-Você.
FIM