Quartas-Feiras
Entrei no shopping por volta das duas da tarde. Era uma quarta-feira. A quarta-feira era meu melhor dia da semana, eu só trabalhava no período da manhã e não tinha pós-graduação a noite, podia aproveitar o resto do dia a vontade. E assim eu fazia todas as quartas. Eu, particularmente, tenho uma grande simpatia por esse shopping, apesar de estar localizado em um bairro famoso da cidade, ele nunca estava lotado, muito menos no meio da semana. Além do mais, ele não é tão grande quanto os outros, e chegava a ser, se isso fosse possível para esse tipo de estabelecimento, aconchegante. Entrei e fui diretamente para a praça de alimentação, que nessa hora não se encontrava cheia. A grande maioria dos frequentadores já tinha almoçado e só restava alguns retardatários, ou, quem não tinha nada para fazer, meu caso. Nestes dias eu não almoçava, ou melhor, não comia o de sempre, arroz, feijão, carne e salada. Eu normalmente ia para aquela lanchonete gringa muito famosa, tenho certeza que vocês sabem qual é. Uma veizinha na semana não mata ninguém, eu me desculpava. Na maioria das vezes eu pedia o mesmo sanduiche. A velha oferta com algum número. Depois de alguns segundos de hesitação, pedi o de sempre. Um hambúrguer no pão preto, com queijo cheddar, misturado com um molho que leva cebola caramelizada no shoyo, uma saborosa combinação. Uma farta porção de batatas fritas e um copázio do refrigerante negro de sabor inimitável acompanhavam. Comi lambendo os beiços e os dedos. Ninguém é perfeito, e eu, além de não sê-lo, sou gordo. Os gordos sabem do que eu tô falando. Depois de comer ficava por ali um tempo, vendo a movimentação e beliscando umas batatinhas que sempre sobravam, e lendo os quadrinhos do papel americano que acompanha a bandeja do sanduíche. Satisfeito, levanto-me e vou, como de costume, até a bilheteria do cinema e compro uma entrada para o filme das sete e meia. Eram exatamente três da tarde, eu tinha ainda quatro horas de preguiçosa vadiagem para desfrutar, e essa era a melhor hora. Subo um andar e me encaminho para uma livraria com nome italiano, lá também é uma cafeteria e ali mato o resto das horas, tomando um café expresso e lendo, lendo muito. Todas as quartas eram assim. Tomava café e lia até chegar a hora do filme. No entanto, essa quarta-feira que eu estou contando, foi especial. Conheci a Rafaela nesse dia. “Ah Rafaela, quanta saudade de você!” Eu andava muito carente nesta época, fazia já alguns meses que não tinha contato íntimo com nenhuma mulher, contato íntimo é muito bom, fazia mesmo era muito tempo que eu não comia mulher nenhuma, me entenderam agora, até a velha e bem vinda “bronha” não tava rolando, para ser mais específico, estava na seca, seca mesmo, braba, aridez completa. Percebi que o negócio era grave quando acordei uma manhã e estava todo melado, tinha ejaculado durante a noite em decorrência de um sonho. São os famosos “sonhos molhados”, falando cientificamente é a conhecida polução noturna. Pensei que tivesse voltado para a adolescência, mas não, o que ocorreu foi que os espermatozóides, que são produzidos todos os dias, se acumularam tanto, que foram expelidos naturalmente, é fisiológico. O que me mostrou que eu estava precisando urgentemente de uma mulher. O grande problema era que nenhuma delas parecia estar precisando de mim. Aí ficava difícil. Fazia pouco mais de cinco meses que eu morava na cidade e foram cinco meses de abstinência, uma forçada abstinência. Porém, neste dia, tudo mudou. Depois do café, fui para a estante de escritores brasileiros procurar um livro do Rubem Fonseca. Eu li quase tudo desse autor durante as tardes que passei na livraria. Achei o que eu estava procurando, um livro de contos chamado “Secreções, Excreções e Desatinos”, era um livro recém lançado, se não me falhe a memória, foi no ano de 2001. São catorze contos, onde Rubem Fonseca “viaja” com as secreções e excreções que nosso corpo produz, através dos desatinos cometidos pelos personagens que não as aceitavam de forma natural. Nesse livro, está muito presente, o pensamento humanista de Michael de Montaigne, um filósofo francês renascentista. Esse filósofo pregava, em sua obra ensaísta de nome “Da Experiência”, a aceitação natural do corpo e todas as suas funções, sendo que a não aceitação acarretava em desatinos. Agora chega de análise literária filosófica e vamos ao que interessa. Estava, eu, lendo em pé o dito livro e não vi a aproximação de uma mulher, creio que ela também não percebeu minha presença. Ficamos os dois ali, lado a lado, concentrados na leitura, quando de uma hora para outra resolvemos nos virar, no mesmo instante, eu para a minha esquerda e ela para a sua direita, então, foi inevitável. Trombamos, testa com testa, ela levou uma considerável desvantagem, pois possuo uma bela e avantajada cabeça. Criou-se uma situação constrangedora e dolorosa. O livro que ela estava lendo caiu, seus óculos também, me agachei rapidamente e apanhei o livro e os óculos, levantei-me e os entreguei com uma cara de pateta pedindo desculpas pelo ocorrido. Ela aceitou as desculpas de muito bom grado e admitiu uma mea culpa. Observei que o livro que ela lia era o “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”, também de Rubem Fonseca, coincidentemente, foi o primeiro livro que li do Rubem, recomendado por um grande amigo chamado Aurélios. Depois dos mútuos pedidos de desculpas, perguntei se ela também era fã desse escritor. Ela respondeu que na verdade não era, só estava lendo seus livros para um trabalho de fim de semestre da faculdade. Disse que não tinha nada contra ao estilo do Rubem Fonseca, mas não era o tipo de coisa que ela gostava de ler, ela preferia os romances mais amenos e filosofia. Ela falou isso sem ainda ter posto seus óculos no rosto e pude notar um pequeno estrabismo, coisa ínfima, só o suficiente para lhe dar um charme especial. Apresentamo-nos com um aperto de mão, ela disse “Rafaela, prazer”, respondi “Francisco, e o prazer é todo meu”. Rafaela era da minha altura, tinha um corpo atraente, cheio de curvas. Os mais exigentes poderiam dizer que ela era gordinha, não sou exigente, nunca fui e não estava em condições de ser. Ela tinha pele clara, cabelos pretos e lisos, que estavam amarrados em um coque e seguros com dois palitos, parecidos com o hashi, aqueles pauzinhos de comer comida japonesa, alguns fios estavam caídos para o lado. Seu rosto era um pouco quadrado, com olhos fechadinhos e negros, dentes brancos e um sorriso sincero, saindo de uma boca carnuda. Ela estava vestida com uma saia verde clara, bem justa, que acentuavam seus dotes, que chegava até o joelho. Uma blusa branca por baixo de um blazer da mesma cor e do mesmo tecido da saia, soube depois que era o uniforme da clínica odontológica que ela trabalhava. Os óculos eram grandes, quadrados, de cor preta, e davam a ela um ar de intelectualidade. Ela era bem bonita.
Da mesma forma que eu, nas quartas-feiras, ela só trabalhava pela manhã e ultimamente passava as tardes desse dia na livraria consultando e estudando os livros para fazer seu trabalho. Depois de um tempo em pé conversando, ela me convidou para tomar um café. Fomos para o balcão da lanchonete e papeamos por muito tempo. Fiquei sabendo que ela era acadêmica do curso de bacharelado em Letras Português/Inglês e que fazia um curso de Alemão numa famosa escola de línguas. Achei um pouco inusitado o fato de ela fazer um curso de Alemão. “Por que Alemão?”, perguntei, ela limitou-se a dizer que estava se preparando para um futuro próximo, e mudou de assunto. Eu, educadamente, não insisti. Falei a ela que era professor de matemática e que estava cursando uma pós na Universidade Federal. Num certo momento, enquanto ela falava, tive um pequeno devaneio imaginando uma transa com ela, em cima do birô da clínica que ela trabalhava. Aqueles óculos e aquela roupa, o modo como o cabelo estava preso, o meu desespero, tudo isso, fizeram com que eu a imaginasse como uma atriz pornô numa cena em um escritório, ela sendo a secretária, muito séria e recatada, que de repente arranca a roupa e se mostra uma verdadeira devassa. Eu sei que estou parecendo alguém com problemas sérios, entretanto, não é isso, é apenas carência. Esse pensamento me fez ter uma ereção, que disfarcei, meio sem jeito, cruzando as pernas. Não que meu “amiguinho” fosse tão exuberante, e sim por ter uma mania não muito higiênica de não usar cueca, que já me fez passar por algumas situações muito delicadas. Eu, como disse antes, estava à flor da pele e só pensava em sexo. E parecia que isso estava para acontecer. O papo fluía agradavelmente, me dando brechas para jogar algumas indiretas e percebi que ela aceitava muito bem, dando risinhos de canto de boca e jogando o cabelo de um lado para o outro. A convenci a ir comigo ao cinema. Ela relutou muito, fez um pouco de doce, mas acabou aceitando. No cinema rolou uns beijos, e uns amassos. Do cinema fomos para um pub onde aconteciam apresentações de bandas de rock locais. Ela se mostrou boa de farra e de copo, bebemos a vera e terminamos a noite no quarto alugado da casa em que eu morava. E o tão esperado sexo foi sensacional. Ela se mostrou tão empolgada quanto na minha imaginação, gemia alto, sussurrava coisas implubicáveis e algumas vezes gritava. Tirei todo o atraso. Passei dois meses encontrando com a Rafaela, foram nove quartas-feiras inesquecíveis, até o dia que ela não atendeu mais meus telefonemas. Fui procurá-la no endereço de seu emprego, contudo, ela não aparecia há duas semanas. Fiquei muito preocupado e achando que ela poderia ter morrido. Ela não morreu. Dois meses depois a encontrei no mesmo shopping que nos conhecemos. Ela estava na fila do cinema, muito bem aconchegada no peito de um loiro grandalhão. Cheguei de mansinho e falei, “Como vai Rafaela”, ela se virou, e para minha decepção, não fez cara de espanto, falou comigo normalmente, como se nada tivesse acontecido entre nós e apresentou-me o homem como sendo seu noivo. O gigante se chamava Hans Steiner, era alemão e veio buscar Rafaela para morar com ele. Nunca mais a vi. Minhas quartas-feiras nunca mais foram as mesmas. A seca voltou com toda força. Pelo menos até conhecer a Glória. “Oh Glória, quanta saudade de você!” Mas isso é outra estória.