O Bar do Céu
-Garçom! Dois chopes estupidamente gelados, por favor!
O garçom aproximou-se da mesa, bloco de pedido e caneta na mão, olhou enviesado para o cliente sem entender do porque do sujeito pedir dois chopes se ele estava sozinho na mesa.
-Dois?
O cliente olhou mais enviesado ainda para o garçom e retrucou:
-Sim, cara! Dois chopes... Por que o espanto? Um chope para mim e outro para o meu amigo que está estacionando a “ximbica” dele aí em frente. Faz o seguinte, cara! Por mais estranho que possa parecer um pedido de um cliente, a tua obrigação é anotar e atender se possível, o mais rápido que puder... Correto?
-Correto, chefia! Dois chopes saindo... Bem geladinho!
Quando o garçom se afastou para atender ao pedido, o cliente com um gesto de enfado levantou-se para receber o amigo com um abraço enquanto murmurava:
-Ainda mais essa... Cada um que me aparece...
-Algum problema, Tião?
-Nada não cara! Apenas uma “ziquira” com o garçom... E aí meu camarada? Quanto tempo... Como é que você vai? Beleza?
-Beleza! ‘Tô por aí... Na batalha! Sabe como é, né? Quando consigo uma folguinha me meto logo nas bibliotecas ou no prédio da antiga administração da E.F.M.M, é lá que fica o Centro de Documentação Histórica do Município, ali no início da Sete de Setembro, esquina com a Farquar, perto da estação Ferroviária... ‘Tá sabendo que é lá que guardam os documentos da história de Porto Velho e Rondônia? É lá que tem o arquivo dos jornais mais antigos do então Território Federal de Rondônia.
-Sei! Sei! Mas me diga aí Zé Lelé, quando é que você vai parar de ser rato de biblioteca?
Zé Lelé deu uma risada gostosa, fato raro em sua característica timidez, bebericou um gole de chope e respondeu ao amigo:
-Meu caríssimo amigo Tião, você bem sabe que tirando a minha paixão pelo inigualável Timão, o PENTA, para desespero de porcos, bambis e lambaris... Aliás, ontem durante a comemoração do quinto título, morreu um cidadão da Republica Popular do Corinthians, um cidadão de oitenta e cinco anos, essa tragédia abriu uma vaga no Bando de Loucos, aproveita e pede a tua inscrição e faz também o juramento de eterno amor.
-Valeu, mais não, muito obrigado, nasci Mengão e vou morrer assim.
-Você é quem sabe! Tua cabeça, tua sentença! O time de vocês tem uma torcida, nós, ao contrário, somos uma nação que tem um time... Então, respondendo a tua pergunta Tião, você sabe, o meu hobby preferido é garimpar livros e jornais antigos em velhas livrarias e sebos, eu gosto muito do cheiro de papel velho, manuseados... Gosto de imaginar a cabeça de quem os leu, o contexto em que foram escritos, a época em que foram impressos... Isso para mim, não tem preço... Parece loucura para as outras pessoas, para mim, não!
-Tem razão Zé... É coisa de doido mesmo... E falando em maluco... Desde que eu te conheço, ainda molecote, você sempre fez jus ao apelido, “Zé Lelé”... Cara! Você vivia andando pelo bairro sempre com livros ou papel e caneta na mão... Mais diz aí, o que você descobriu nessa “garimpagem” em meio às traças?
-Descobri uma história incrível! Mais antes, deixa eu te falar... Lembra-te do português, dono da padaria lá do bairro, da Baixa da União? De quando a gente era moleque? Da Padaria Queluz?
-Claro que eu lembro! Dono e técnico do time da meninada do bairro... Corintiano roxo... Lembro até do teu gol salvador, Zé Lelé, no último minuto do segundo tempo daquela partida inesquecível contra o time da rua de cima... Nossa Senhora! Que festa nós fizemos com a vitória em cima do time da outra rua... E aí? Por anda o português? Faz muitos anos que eu não o vejo.
-Pois é! Foi ele, o velho de oitenta e cinco anos que morreu!
-O português da padaria?
-Ele mesmo!
-Meu amigo...!!! E você dá essa notícia assim... Na boa... Como se nada estivesse acontecido?
-E você queria o quê? Que eu te desse a notícia chorando? Ora, o velho foi fazer companhia ao Dr. Sócrates... Foi às estrelas muito bem acompanhado... O enterro vai ser hoje... E aí? Vai me acompanhar no enterro do velho?
-Claro que eu vou... Só você mesmo, Zé Lelé! Sabia meu chapa, que você é doidinho, doidinho de pedra?
-Sei! Vamos tomar o chope para comemorar o penta do Timão e à memória do portuga. Valeu? Depois do nosso chope a gente vai para o velório e acompanha o enterro.
-Valeu! E aí, cara! O que é que você descobriu no meio das traças? Que história incrível é essa?
-Meu camarada! Esta semana, lendo um exemplar do Jornal Alto Madeira, da década de quarenta, descobri uma reportagem policial...
-Década de quarenta? E Ainda existem jornais dessa época, aqui em Porto Velho?
-Claro, Tião! O Jornal Alto Madeira foi fundado em mil novecentos e dezessete. É um dos jornais mais antigos ainda em circulação na Região Norte...
-Caramba! Quer dizer que esse jornal é tão velho assim? Meu amigo... Mil novecentos e dezessete... Dezessete... Meu camarada! Esse ano não é o ano da Revolução Russa?
-Congratulation meu caro Tião! Nunca imaginei que você detivesse essa informação.
Fazendo um gesto com a mão em sinal de modéstia, Tião comentou:
-Tem nada não... É que eu ainda nesta semana assisti a um filme sobre esse “piseiro” dos russos que derrubaram o “Quezar”, rei da Rússia, e ainda acabaram com a família do sujeito, rapaz!
-Czar, Tião! A pronúncia correta da palavra é Czar, monarca do Império Russo... Um detalhe, Tião, embora os russos a usassem para designar o Imperador deles, essa palavra tem origem latina, ela deriva da palavra “Caesar”. Um dos mais famosos imperadores do antigo Império Romano.
-Sim! E o que é que eu faço com essa informação?
-Nada! Na verdade, essa informação não vai nem aumentar e nem diminuir o teu saldo bancário, porém vai aumentar a tua autoestima e melhorar o teu conceito sobre sociedade em vivemos, e, até entender o regime político vigente no país.
-Como assim?
-Tião, o homem, e quando eu digo homem, eu não estou me referindo especificamente ao homem em si, mas ao ser humano em geral, homem ou mulher... Entendeu?
-Sim! Continua...
-Pois bem! O homem, o individuo, tem necessidade...
-Necessidade de quê?
-Tem necessidade de conhecer as suas origens... Saber de onde veio... Saber a razão da sua existência... Sacou?
-Mais ou menos... E daí?
-Então... Por exemplo, se você tivesse crescido sem conhecer os teus pais... Você não teria curiosidade para saber quem seriam eles?
-Claro! Mas a questão dos pais é muito diferente desse “Quesar” aí... Dos russos...
-Czar... Tião! Czar! E então... Ledo engano da tua parte, Tião! E a propósito, foi exatamente a derrubada do império dos Czares que deu início ao comunismo que se contrapôs à democracia moderna que, por sua vez, teve suas origens na Revolução Francesa em conjunto com o Iluminismo e que foi supostamente aprimorada pelos Estados Unidos da América. Como você vê Tião, conhecer pelo menos parte da história da humanidade nos faz entender os vaivéns da sociedade atual, ou melhor, quando estudamos e conhecemos o passado, passamos a entender com mais clareza o presente e nos preparamos para o futuro... Como dizem por aí, “tá ligado na fita”?
-Hummm!!!!
-Continuando... Guardadas as devidas proporções, o exemplo a respeito dos pais é mesma coisa em relação à história do bairro em que você nasceu, exemplando, a Baixa da União, a cidade de Porto Velho, a região, o país e o mundo... Mesmo que institivamente, o homem tem necessidade de conhecer as suas origens.
-Hummm! É mesmo é...?
-Por exemplo, de novo... Quando eu te falei...
-Um momento, Zé! Garçom, por favor, mais uma rodada de chope e uma isca de peixe para tira-gosto... Valeu? E aí, Zé? Continua...
-Então... Quando anteriormente eu te falei do Jornal Alto Madeira e a tal história incrível da década de mil novecentos e quarenta, eu descobri que aquela sorveteria que existia ali na esquina da Rua Prudente de Moraes com a Rua Almirante Barroso, nas cercanias do bairro do Mocambo... Ali, cara! Na parte de cima do prédio, existia um salão de baile... Uma espécie de clube dançante, cujo nome era “Bar do Céu”.
-Bar do Céu... Lembro-me desse nome... Lembro que meu pai dizia que quando era seringueiro, na época dos Soldados da Borracha, ele dizia que ia num bar com esse nome... Ele ia campear a mulherada por lá...
-Então... Era nesse bar que os solteiros sem grana da época iam tentar arranjar um “cobertor de orelha”... Nesse bar aparecia gente de todo tipo, em sua grande maioria, gente do povo, caixeiros, precursores dos balconistas atuais, cassacos da EFMM, pedreiros, taxistas, estivadores, seringueiros e por aí vai...
-‘Tá certo, Zé... E o que é que essa turma tem a ver com a história incrível que você descobriu no meio das traças?
-Pois é Tião... A história seria cômica se não fosse trágica pelo inusitado dos nomes envolvidos na trama...
-Hummm!!! Nomes... É? Deixou-me curioso... Conta aí a tal história inusitada...
-É sim, cara! Inusitada porque hoje em dia se sai uma história dessas numa manchete em qualquer mídia noticiosa ou mesmo em algum blog... Com a ditadura do “politicamente correto”, no mínimo, ia causar o maior furor no meio da comunidade evangélica e até mesmo nos carismáticos da Igreja Católica...
-Taí...! Uma briga que eu queria ver, Zé! E deixa de enrolação, homem! Fala aí do que se trata!
-Pois é, meu camarada! A reportagem aborda uma briga que aconteceu nesse bar...
Zé Lelé pegou a inseparável bolsa que carregava à tiracolo, pegou várias fotocópias, escolheu uma e leu para o amigo.
-Foi o seguinte...
“A Polícia Territorial do pujante município de Porto Velho, capital do Território Federal de Rondônia, apreendeu nas primeiras horas deste Sábado de Aleluia, vários indivíduos beligerantes que promoveram arruaças em um bar popularmente conhecido por “Bar do Céu”, assiduamente frequentado pelas ‘Damas da Noite’. A reportagem deste periódico apurou que a alcunha do referido bar refere-se ao fato do mesmo localizar-se nas cercanias do Cemitério dos Inocentes, próximo ao Bairro do Mocambo, o que facilitaria o enterro dos defuntos abundantemente ali produzidos.
A reportagem apurou ainda que os indivíduos apreendidos pela gloriosa polícia local promoveram brigas de tamanho vulto que cadeiras, mesas, garrafas e até mesmo um frequentador com alto teor etílico foi jogado junto com os móveis pela janela do segundo andar do estabelecimento comercial de baixo meretrício.
O Sargento Calçada, comandante da patrulha policial que averiguou a ocorrência, informou que a vítima arremessada pela janela, identificada como Jesus Pinheiro da Silva Costa, adentrou ao local mais bêbado que um gambá e ficou apalpando os glúteos das meretrizes acompanhadas, ao tempo em dizia que os homens que as acompanhavam não honravam o que carregavam dentro das braguilhas; atitudes e comentários que causaram grande revolta entre os homens presentes, motivo do quebra-quebra dentro do referido estabelecimento ocasionando vários hematomas e ferimentos entre os litigantes”.
Zé Lelé terminou de ler a cópia da reportagem da antiga edição do Jornal Alto Madeira e olhou interrogativamente para o amigo Tião:
-Percebeu o rolo? A bronca que um fato desses provocaria se o acontecido fosse nos dias atuais?
-Não! Não percebi e nem saquei nada... O que diz aí é que um bêbado arruaceiro aprontou com a mulherada do bar e tomou um “cacete” sem tamanho para aprender a respeitar as mulheres dos outros... Mesmo puta, se está acompanhada, tem que ser respeitada... Mereceu as ‘porradas’ que levou.
-Nem tanto assim, né Tião? Mas de qualquer forma eu não li toda a matéria para você, inclusive a manchete enunciativa da reportagem.
Zé Lelé, simultaneamente, enquanto tomava um gole de chope repassou para o amigo a cópia da reportagem, depois, pegou uma isca do tira-gosto e degustou-a com satisfação.
-Caraca! Que raio de manchete é essa, Zé? Aqui está escrito: “JESUS CHEGA BÊBADO NO CÉU, PROMOVE ARRUAÇA, APANHA, E É JOGADO PELA JANELA”. Puta que os pariu!!! O cara que redigiu essa manchete era completamente sem noção...
-Para você vê Tião! Naquela época os caras não estavam nem aí para o “POLÍTICAMENTE CORRETO...” Correto, Tião? E aí, garçom? Traz mais uma rodada de chope e a conta... Temos um compromisso... Temos que dar adeus a um Louco que deixou o Bando.