Um Iphone para Nemo
A estrada estava limpa. Há dias, Poliana esperava pela viagem. Absorta em seus pensamentos, aproveitava a vasta paisagem de casinhas de madeira solitárias em morrinhos, pastos, cavalos, vacas, cercas, lagos e árvores para sonhar com aventuras no campo. Mal podia esperar para saborear os quitutes de vovó Cristina feitas em fogão à lenha, andar a cavalo, pescar com a mãe à beira do rio e ouvir histórias sobre o Curupira, o Saci e a Mula-sem-cabeça, que tio Denílson, o caseiro e fiel ajudante da vovó, adorava contar.
Seu devaneio no entanto sofria uma espécie de interferência, um incômodo silencioso. Sabia que aproveitaria a fazenda de vovó, apesar de ter ido apenas uma única vez, aos 6 anos. Mas agora aos 9, algo dizia que o frescor do campo, das flores e borboletas só serviriam à seu próprio e solitário deleite.
Ainda perdida na mutação de imagens campestres que se despontavam alegre e suavemente com um movimento de cores e flores que lembravam pinturas impressionistas, foi interrompida num súbito descontentamento em alto e bom som:
- "Marco Antônio, que de tão importante você está fazendo pra não largar essa PORCARIA? Você está nessa há horas. Eu tô começando a me arrepender de ter te dado isso!!!"
No banco traseiro, Marco Antônio revirou os olhos e com ar entediado, fingiu ter guardado seu Iphone no bolso. Aos 11 anos, já dava sinais de que não se importaria muito com qualquer sermão dos pais no futuro. A advertência da mãe era mero aborrecimento que duraria alguns minutos antes de ele "escapar" novamente do chatíssimo "programa de índio" no qual a família estava irremediavelmente metida.
- "Vilma,querida, deixe o garoto em paz... Você sabe sabe como crianças se entediam depressa..."
Vilma remexeu-se no banco dianteiro, e meio a contragosto engoliu o comentário do marido.
- "Ele podia ao menos conversar, Reginaldo", resmungou em voz baixa o suficiente para colocar pra fora sua frustração sem ser notada. Virou para trás. Marco Antônio, compenetrado voltara a sorrir para a tela do aparelho, exercitando os dedos.
Na fazenda, vovó Cristina esperava ansiosa pela visita da família.
O corpo levemente curvado, consciente da artrite e as rugas que lhe tomavam a face, não demonstravam no entanto, ter qualquer poder sobre seu espírito, sempre bondoso e gentil. Conservava ainda a elegância dos tempos de moça, e a cabeça erguida de quem realizara um sonho após herdar uma fazenda caindo aos pedaços do pai, que ela transformara em um pequeno paraíso na terra com recursos da abastada família, e em seu lar para a aposentadoria. Sentada num banco rústico de madeira ao lado da porta do casarão da fazenda, muito bem-cuidado e recém-pintado de amarelo, abriu um largo sorriso quando o carro estacionou a poucos metros da cerca que guardava agora seu mais novo empreendimento.
-"Vovó!" Poliana corria para abraça-lá. Vilma vinha logo atrás com um sorriso de quem finalmente encontrara um pedaço do céu para descansar e abraçava longamente a mãe. Três anos de ocupação com a criação de uma micro-empresa, a doença do sogro, viagens de negócios do marido e a mudança para um novo apartamento a afastaram um pouco de seu "Paraíso" familiar. O restante da família seguia seus cumprimentos: Reginaldo com um abraço gentil e afável voltando para buscar as malas, Marco Antônio com um oi seco à avó e seguindo para dentro do casarão. O brilho da tela do Iphone estava novamente em seus olhos.
À noite Poliana ria à luz da fogueira, enquanto tio Denílson assava os peixes apanhados por ela e "Dona Vilma" durante o dia. O passeio à cavalo por entre os montes havia deixado a menina em êxtase, mas o que mais a emocionara fora o pequeno e belo lago de carpas que vovó conseguira à muito custo mandar construir ao lado do casarão.
-"Tio Denílson, hoje eu e a vovó demos nomes pros peixes do lago!
Eu gostei de um que achei o mais colorido e dei a ele o nome "Nemo". Não é legal?"
-"Oxê, claro menina! Muito legal. Mas tu podia ter dado o nome de Marco Antônio né? Peixe num faz nada o dia inteiro,só nada. E aquele teu irmão é igualzim vice?! O Muleque é pior que poste, e fica só grudado naquele negócim compricado dele lá."
A menina riu. Alongaram a noite, ao calor do fogo e ao brilho do luar contando estrelas e histórias.
No dia seguinte, após o café, Reginaldo acomodara-se numa das redes da sacada do piso superior do casarão e se entretia com um notebook. A esposa colocava a conversa em dia com a mãe enquanto a ajudava com afazeres na cozinha. O cheiro adocicado dos quitutes já se espalhava pela casa. Marco Antônio com o olhar de tédio habitual andara sem rumo pela sala, até se encostar no parapeito de uma das janelas do andar de baixo. Como que por um instante milagroso desgrudara os olhos de seu poderoso companheiro tecnológico e o colocara no bolso de trás da calça. Decidiu por se arrastar até a porta dos fundos, e abrindo-a, deparou-se com o vasto campo a frente, com o lago de carpas e ao longe uma cerquinha branca, como se vovó tivesse decidido dar um toque de casa de bonecas no imenso quintal do casarão. Sentiu repentinamente, algo a roçar-lhe o bolso. Poliana surgiu como num flash à sua frente e ele logo se percebeu sem seu amado "entretainer" para momentos chatos em família.
-" Poliana, devolve. Devolve AGORA!!!"
A menina rodopiou como uma bailarina, fazendo girar graciosamente o vestido branco e florido e uma bolsa de pano colorida e relativamente volumosa que contrastava com as calças jeans pretas e a camisa polo do irmão. Descalça e com um semblante provocador, prometia dar trabalho.
- "VEM PEGAR!" e rindo, saiu saltitando veloz e graciosamente pelo campo. Num instante atravessara aos pulos e rodopios a frágil pontezinha de madeira do lago de carpas e saltara a cerca branca com a destreza de um atleta.
Marco Antônio tropeçara nos próprios cadarços e desengonçado, demorara alguns segundos para se recompor ao passo que a irmã já estava longe. Pôs-se a correr desenfreadamente e ao pular a cerca quase a perdeu de vista. Quando achava que estava chegando perto, Poliana deu um risinho sarcástico:
- "VEM PEGAAAR!!" Escalou uma árvore com tamanha rapidez que Marco Antônio, esbaforido pensou em desistir da empreitada. Tomando fôlego, agarrava -se como podia sem conseguir alcançar os galhos mais altos. A corrida continuou campo afora, e Poliana sempre deixando o irmão para trás, tal qual um carro pontente contra uma carroça. Nesse tempo, rolara por baixo de uma vaca no pasto, saltara por cima de um pequeno bezerro, e escapulira por entre um armazém abandonado, fazendo Marco Antônio entrar num forçado esconde-esconde. Continuou a brincadeira se embrenhando pelo meio de um bosque próximo, desaparecendo por entre as árvores , e à essa altura Marco Antônio, como que por milagre começou a rir. Sentindo o rosto quente, após algumas horas, procurou pela a irmã, entrando num espírito de brincadeira e já esquecido do motivo pelo qual correra tanto atrás dela.
Sentada num galho alto, Poliana gargalhava. Quando desceu do galho, observou a bolsa de pano que carregava, que por milagre não havia avariado com a aventura. Sentada na grama, estendeu uma pequena toalha, tirou algumas frutas da bolsa e ofereceu ao irmão.
A tarde passou num agradável piquenique, cheio de risos e brincadeiras. Poliana contava piadas, jogava cinco-marias e Marco Antônio fazia acrobacias. O garoto estava de volta à vida.
Poliana no entanto sentiu falta de algo, que tinha a sensação de ter escapulido por entre seus dedos na hora da corrida.
Nesse mesmo instante, Nemo topara com um um objeto estranho em seu lago.
Era talvez, o primeiro peixe na face da terra a ganhar um Iphone.