Malu
Maria de Lurdes, conhecida como Malu, é uma cubana que chegou ao Brasil de uma forma bastante misteriosa, pelo menos para mim, que convivi quase um ano com ela de forma íntima e até hoje não sei como aquela bela mulher da ilha de Fidel entrou em terras tupiniquins. A única informação que eu sei dos seus tempos em Cuba é que ela fazia parte da seleção de atletismo e que iria participar dos jogos Pan-Americanos, que ocorreu em Havana em 1991, e competiria no salto à distância, entretanto, chegou ao Brasil nesse mesmo ano, antes dos jogos, quando estava para completar 18 anos. Sempre desviava o assunto quando eu perguntava como ela entrou no país. Mistério.
Essa estória se passou na cidade do Rio de Janeiro no ano 2000. Malu estava então com 27 anos. A primeira vez que a vi foi dentro do ônibus Praça XV/ Marechal Hermes que eu pegava toda quinta-feira por volta das onze, onze meia da noite, lá na praça XV. Eu vinha de um barzinho em Vila Isabel, de nome Rio 40 graus, onde eu me encontrava com um grupo de amigos que eram formados em comunicação na UERJ e freqüentavam esse bar todas as quintas. Eu não era e nem sou formado em comunicação, na verdade, não sou nem do Rio de Janeiro, sou cearense radicado em Sergipe há muitos anos, eu era um recém formado em Odontologia que morava no Rio há poucos meses e descobri esse barzinho e essa turma devido a um dos integrantes do divertido, intelectual e às vezes bizarro grupo, ser um dentista e professor de graduação do curso de Odontologia também da UERJ, e também formado em comunicação pela mesma, que conheci através de um amigo em comum que tinha se formado em Aracaju e que estava fazendo um curso de especialização em Periodontia na UERJ. O bar ficava bem em frente à Universidade e do lado do Estádio Mario Filho, o Maracanã, que é vizinho do bairro de Vila Isabel. Eu sempre pegava uma carona com esse amigo que também é dentista até a praça. Quando eu chegava o 261 já estava estacionado e eu sempre conseguia um lugar sentado, que era muito bem vindo, já que a viagem era longa. Eu descia no ponto final do ônibus em Marechal Hermes, mais precisamente na Rua Acapu. Nesse dia, quando entrei no coletivo, tinha pouquíssimas cadeiras vagas, e uma das poucas vazias era justamente ao lado de uma vistosa morena que lia um livro, aproximei-me pedi licença para sentar e cumprimentei-a com um “boa noite”, ela sem tirar os olhos do livro respondeu ”buenas”, olhei de rabo de olho e achei que ela estava me gozando, porém, como não sou muito de falar e estava alcoolizado e muito cansado, não retruquei, virei para o lado e rapidamente cochilei. Minha rotina semanal nessa época era bem cansativa, eu trabalhava de segunda a sábado em uma clínica popular em Bangu, zona oeste da cidade e um dos lugares mais quentes do Rio de Janeiro, no verão chegava fácil aos 40 graus, pois o bairro fica entre dois paredões gigantescos de pedra que impedia a brisa, o tornando insuportavelmente abafado. A jornada era das 8 da manhã até as 2 da tarde, quando chegava outra equipe de dentistas que trabalhavam das 2 até as 8 da noite. Nas quintas e sextas eu saia de Bangu e ia até o centro da cidade para atender no Sindicato dos Camelôs do Rio de Janeiro, situado em uma praça ao lado da Avenida Presidente Vargas, bem em frente da Estação Terminal D. Pedro II, a famosa Central do Brasil, das 3 da tarde até as 7 da noite. Às 7 da noite, nas quintas-feiras, eu pegava um ônibus do Centro até Vila Isabel para encontrar a turma e beber uns chopes. Por conta disso quando eu entrava no 261 eu dormia quase que imediatamente. Depois de um bom tempo cochilando senti um toque no ombro, abri os olhos com aquela cara de assustado de quem acabou de acordar e disse “Hã?, o que?”, ela sorriu e disse em um charmoso e carregado sotaque espanhol “Me de licença por favor”, “Ah sim, pois não” respondi e afastei as minhas pernas para que ela pudesse passar. Reparei que estávamos em Madureira. Depois de vários encontros dentro do ônibus, criei coragem e a convidei para sair e ela aceitou de imediato e a partir desse dia Malu passou a fazer parte da minha vida pelos oito meses que morei no Rio. Encontrávamo-nos todas as quintas no ônibus, e nos finais de semana íamos a algum barzinho em Madureira para ouvir samba, ou então para o Ballroom no Humaitá para assistir shows de rock. O samba era a preferência dela, a minha era o rock. Todos os domingos nós almoçávamos na casa em que ela morava dividindo o aluguel com outras duas amigas em Madureira, próximo da quadra da Portela. Logo após o almoço nos trancávamos no seu quarto, de onde eu saia só por volta das oito da noite. Nessas tardes tivemos longas conversas sobre a vida em Cuba. Ela sempre sorria quando eu me exaltava nos elogios a sua terra, e dizia “Doutorzito, niño, você não sabe de nada” E eu pedia sempre para ela me contar. Ela me contou que logo após a tomada do poder pelos revolucionários em 1959 , foi feita a reforma agrária e o combate ao analfabetismo, da mesma forma os alimentos foram racionados e a liberdade de ir e vir não existia mais, muito menos a liberdade de expressão e pensamento. Com a reforma agrária todas as terras, inclusive privadas, muitas dessas de empresas americanas, foram nacionalizadas o que deu início ao embargo econômico e financeiro norte americano durante o governo do Presidente Eisenhower, concomitante ao apoio soviético, tornando Cuba oficialmente comunista. Ela disse que o consumo de carne era de 230 gramas por pessoa, e que depois foram substituídas por uma mistura de carne e soja e mais 460 gramas de frango, o sabonete era um tablete por pessoa, assim como o sabão para lavar roupas, isso para passar um mês, tudo controlado pelo governo através do “Libreto de Abastecimento”. Porém, com o decorrer dos anos o sistema de racionamento de alimentos se tornou uma fonte significativa de corrupção, devido principalmente por não se conseguir controlar com eficácia se os alimentos chegavam ao seu destino. Boa parte dos alimentos era desviada, e vendida a preços muito superiores no mercado negro. O salário mínimo era de 225 pesos (11,25 dólares) e a pensão mínima de 164 pesos (8,20 dólares). A maioria das pessoas vivia na penúria, entretanto, tendo educação de qualidade e saúde pública de primeiro mundo gratuitamente. Os índices de analfabetismo e de mortalidade infantil eram quase nulos, contudo ela sempre dizia que isso não compensava a falta de liberdade, e por isso muitos queriam abandonar o país. A procura do direito de ir e vir, de pensar e falar, de concordar ou descordar, de reclamar ou apoiar era a motivação crucial para as fugas que aconteciam na ilha. A democracia era o verdadeiro sonho de consumo de muitos dos habitantes do país Castrista. Ela dizia também que a exaltação que muitos intelectuais e políticos faziam a Cuba era balela, conversa para boi dormir, eles não moravam lá, eles não sentiram na pele o que ela sentiu, eles estavam de barriga cheia, podiam comer o que quisessem, ir aonde bem entendessem sem ter o receio de estar sendo vigiado e posteriormente castigado, é muito fácil falar o difícil é vivenciar. Ninguém olhava Cuba com um microscópio para ver o quanto maligno e “metastasiado” era o tumor que corroia toda a população cubana. Ela falava isso com o olhar perdido e melancólico, no entanto, sem raiva ou ódio na voz, somente tristeza e esperança de mudança. Essa era a Malu que conheci.