Questão de Sintonia
A madrugada estava fria e escura.
O profundo decote do vestido de noite,
Escondia-se debaixo do sobre tudo marrom.
Grandes óculos escuros realçavam seus lábios,
que assim, pintados de vermelho,
davam-lhe um ar sensual.
Protegeu os longos cabelos com a seda de um lenço.
Recebeu um breve telefonema,
Tomou seu último uísque saiu sem trancar a porta.
No elevador, viu afixada a placa de conserto.
Desceu pelas escadas mal iluminadas do hotel barato,
De onde aguardava o momento certo:
Mais uma missão...
Deixou as chaves com o porteiro.
Ao abrir a porta de saída,
Observou os que brincavam nas poças d’água:
Lembranças do temporal da tarde...
Ela também chamou atenção deles,
Um metro e oitenta de mistério.
Num lapso de tempo, repensou seu plano:
Entraria no boteco que ficava ao lado da boate,
ambos de frente para o hotel.
Compraria um maço de cigarros e,
recostada na última porta da direita, ascenderia um.
Tragaria a fumaça longamente
antes de joga-lo na calçada.
A curiosidade dos motoristas congestionava a rua.
Viu aquele, o do carro preto,
ameaçado pelo canivete do assaltante enfurecido!
Um calafrio percorreu-lhe o corpo...
Entretanto, concluiu que era tarde demais para ter medo.
Do outro lado, rapazes,
mal saídos da adolescência diante do strip-tease.
Iniciação para uns,
Diversão para todos...
Ela impôs um silêncio incomum no boteco.
Expressão de expectativa ou de suspeita,
De quem era e do que queria.
Um deboche verde quebrou o clima:
- Que é isso, meu Deus, é homi?
Vinha de uma figura masculina.
Metro e meio.Nos dedos, anéis.
Cabelos puxados para trás,
Pendia, no peito ossudo, uma cruz.
Camisa xadrez aberta sob um paletó puído.
Rosto encovado, olhos esbugalhados...
Parecia fugido dos infernos!
Trêmula, abriu o maço.
Ao levar um a boca,
O fogo de um isqueiro ascendeu o cigarro com mão firme.
Ouviu em saudoso sotaque,
A oferta de companhia...
Respondeu com um sorriso irônico.
Prosseguiu com seu plano:
Fazendo seu percurso,
Percebeu no beco escuro,porta de saída da boate,
O movimento de pessoas.
Seriam usuários de drogas...Ou ratos?
O cheiro de lixo era forte.
Apertou o passo e,
precavida, olhou para trás.
Viu-se seguida pelo sujeitinho do bar.
“- O que queria?”- pensou,
“-Aquela hora, certamente estaria armado...”
Correu com todas as forças.
Já no outro lado do túnel, voltou-se e não o viu.
Fez sinal ao táxi.
Ofegante, entrou pela porta de trás.
- Algum problema? Quis saber o motorista
- É..., respondeu-lhe sorrindo, num misto de emoções.
Avaliando aquele belo rosto pelo retrovisor, ele quis saber mais:
- Para onde senhora?
Na segurança de sua biblioteca,
Cercada pelas maiores obras literárias;
Junto da doce companhia de seu animal de estimação;
Ela sentou-se à mesa de trabalho e escreveu:
A madrugada estava fria e escura...