Decadência

O lamentoso chiado da velha cadeira de balanço era ouvido todas as noites. Começava com a chegada do crepúsculo, persistindo perenemente, no seu vai-e-vem, durante toda a modorrenta madrugada, calando-se apenas aos primeiros brilhos do alvorecer. Nesta hora, dois chinelos arrastam-se reumaticamente ao chão, na direção do quarto, e enfim, algumas horas de paz. A antiga casa, situada numa decrépita rua de um bairro decadente, já respirou melhores dias. A envelhecida dona da casa também. O muro descascado e descolorido e o velho portão de madeira apodrecida da casa, se assemelham a pele flácida e sem brilho, das faces fincadas de profundas rugas, da ressequida moradora. Uma completa a outra, simbioticamente. São carne e unha. Cúmplices nos áureos tempos. Coniventes na bancarrota. No passado glorioso, o casarão era frequentado por autoridades, artistas, intelectuais e poderosos políticos. Somente a fina nata, masculina, da sociedade, perambulava, se embriagava e amava, nos vários cômodos do famoso cabaré de Madame Louise e suas devassas meninas. Maria Gorete, verdadeiro nome de Madame Louise, era uma bela prostituta de grandes olhos azuis, cabelos naturalmente loiros, corpo voluptuoso e um belo sorriso de perfeitos dentes brancos. Gorete nasceu numa família muito humilde, de vida muito sofrida, do sertão nordestino. Desde a tenra idade percebia os olhares gulosos dos homens sobre seu corpo, podia sentir o odor do desejo deles. Com isso, descobriu que a vida poderia ser mais fácil. Aos treze anos fugiu com um representante de vendas, 30 anos mais velho que ela, indo morar na capital. Contudo, o apaixonado caixeiro não tinha posses suficientes para contentar a esfomeada ganância da bela menina, e poucos anos depois, Gorete se viu embarcando para a Europa, ainda civilmente incapaz, acompanhada de um velho diplomata. Por lá ficou, durante 10 anos, exercendo a mais antiga das profissões. Economizou dinheiro, colecionou conquistas e prazeres, e voltou ao Brasil. Logo em seguida adquiriu o sobrado e abriu seu próprio negócio. O know hall conseguido no velho continente mostrou resultado imediato. Por quinze anos o puteiro de luxo rendeu extraordinariamente bem, bancando todos os abusos luxuriosos de sua impudica dona. Louise era, sem dúvida, excelente na cama, porém, péssima com números. Não obstante ao sucesso, veio a decadência. Ano após ano de definhamento, como uma doença incurável vai corroendo a saúde, veio à derrocada total. 30 anos se passaram desde o fechamento completo do libidinoso e pomposo estabelecimento. Quase nada restou. A bela aparência de outrora, tanto da casa, como da dona, escorreram e foram sugadas pela vida, sem deixar qualquer vestígio. Amigos ela nunca teve, eram unicamente clientes. Os familiares estavam mortos. E hoje, Maria Gorete e o casarão, passam as noites insones, assombrados pelos fantasmas do passado. O sono era perturbado pela lembrança da música, do cheiro e do gosto do que se foi, tornando a noite insuportável, e só com a luz do dia, entre cochilos sobressaltados, conseguia descansar o velho corpo por parcas horas. Algumas horas depois de um sono mal dormido, Maria Gorete levanta-se e segue a mesma e enfadonha rotina de sempre. Vai a cozinha e faz café. Essa é a única hora que o cheiro úmido e doentio do recinto é substituído pelo inebriante perfume do pó negro sendo coado. Depois de saborear duas bem servidas xícaras, a velha puta se dirige a biblioteca. Esse cômodo, apesar da poeira e do mofo, excepcionalmente, continua o mesmo de antigamente. Ela passa todo o resto do dia nesse local, lendo sua coleção de livros, alguns bem raros, aleatoriamente, enquanto a luz ali entrasse. Há muito as contas de energia deixaram de ser pagas e a casa era iluminada por alguns candeeiros a querosene. Durante a noite, o adocicado e nauseabundo cheiro do produto impregnavam toda casa. Nesta tarde, encontrou, por acaso, um antigo volume em espanhol, do livro Pantaléon e as Visitadoras, de Mário Vargas Llosa. O livro foi um presente de um ex-revolucionário peruano, quando Gorete ainda vivia na Europa. Ela passou os dedos pela capa do livro, sentindo a textura do papel, folheou displicentemente, e por um instante abriu um sorriso na boca edêntula e murcha. Ficou por muito tempo arrebatada e pensativa. O livro aninhado em seu colo. Levantou-se ao entardecer. Recolheu todos os candeeiros espalhados pela casa e derramou o liquido inflamável por toda a biblioteca. Placidamente ascendeu um fósforo e o deixou cair sobre os livros umedecidos. O fogo rapidamente tomou conta da biblioteca, destruindo-a totalmente, e assim se espalhando por todos os cantos da casa. Agora o altivo sobrado arde em combustão. Entre os estalos e gemidos da casa em chamas, é possível escutar, o triste ranger oxidado da velha cadeira de balanço.

jacosta
Enviado por jacosta em 03/12/2011
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